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Tecnologia nos dá poder de Deus, mas ainda temos cérebros paleolíticos

Jason Silva, filósofo, futurista e apresentador dos programas Jogos Mentais e Origins - Divulgação/Experience Club
Jason Silva, filósofo, futurista e apresentador dos programas Jogos Mentais e Origins Imagem: Divulgação/Experience Club

Helton Simões Gomes

De Tilt, em São Paulo

11/03/2020 04h00

Sem tempo, irmão

  • Tilt conversou com Jason Silva, filósofo, futurista e apresentador de TV
  • Venezuelano apresenta programas Jogos Mentais e Origins, da National Geographic
  • Ele acredita que a ciência deve ser envolta em poesia para criar fascínio
  • Ideia é gerar um deslumbramento e um culto provocados pelas religiões
  • Para ele, tecnologia avança tão rápido que nosso cérebro não é capaz de acompanhar

O filósofo e futurista Jason Silva não economiza nas metáforas para fazer com que a ciência seja mais saborosa. Ele quer dar ao Big Bang, aos circuitos cerebrais e à tecnologia uma camada de deslumbramento tão grande, que o fascínio de quem vê se transforme em religião.

Apresentador de "Jogos Mentais" e "Origins", da National Geographic, o venezuelano de 38 anos aborda nos dois programas de TV as artimanhas do nosso cérebro para condensar informação e revê a história da humanidade por meio das tecnologias.

Silva não se abala com defensores de teoria da conspiração de que a Terra é plana ou com o movimento anti-vacina. "Eu poderia passar o tempo todo reclamando da ignorância ou da desinformação. Mas sei que, muitas vezes, as pessoas são possuídas por informações erradas por terem medo. E medo se propaga como um vírus", defende em entrevista ao Tilt.

Veja abaixo os principais trechos da conversa que Silva teve com Tilt. Ele esteve em São Paulo para participar do Experience Club, um programa para altos executivos de grandes empresas do país.

Tilt - Você palestrou para diversos executivos. O que disse?

Jason Silva - O foco da minha apresentação foi a velocidade exponencial da mudança tecnológica. Seu smartphone é mais poderoso e um milhão de vezes menor que um computador do tamanho de um prédio e que custava US$ 60 milhões há 40 anos. Nos próximos 20 anos, o celular estará em nosso cérebro e será do tamanho de uma célula de sangue. Uma vez que as pessoas entendem o poder da exponencialidade, elas podem começar a imaginar o que seriam impacto, transformação e criatividade exponencial.

Tilt - E estamos preparados para um avanço exponencial?

Jason Silva - Não (risos). Edward O. Wilson [entomologista e biólogo norte-americano] diz que "temos cérebros paleolíticos, leis medievais e tecnologia divina". E esse é o problema. Temos que atualizar nossa consciência e depois atualizar nossas leis.

Tilt - Como?

Jason Silva - [Experiências] psicodélicas. Mas não sei se são para todos. É o que muitas pessoas fazem, por meio da meditação. O efeito é o que os astronautas em órbita têm quando possuem uma visão geral da Terra. Da mesma forma, a realidade virtual pode potencialmente aumentar nossa empatia. As pessoas com problemas mentais estão fazendo uso de psicodélicos em ambientes controlados para abrir e expandir suas mentes. Precisamos expandir nossos cérebros paleolíticos e religá-los ou reprogramá-los para sermos mais divinos.

Tilt - Vemos surgir quem acredite que a Terra é plana, que o nazismo era socialista e quem não vacine seus filhos por achar que isso causa autismo. Como é trabalhar com divulgação científica em um mundo cheio de gente que não está ligando para a ciência?

Jason Silva - Eu acredito que a ciência é a forma para ter uma compreensão objetiva do mundo. Meu programa [Jogos Mentais, da National Geographic] era sobre neurociência, sobre fatos.

Mas toda tecnologia tem um lado sombrio. A primeira tecnologia foi o domínio do fogo. Quando fizemos isso, conseguimos cozinhar pela primeira vez. Mas fogo também permite queimar uma vila. O alfabeto, os idiomas e a tecnologia da informação nos permitiram transmitir conhecimento. Mas a linguagem pode ser usada para propagar discurso de ódio. Com as mídias sociais, todo o conhecimento do mundo está no seu bolso, mas, adivinhe!, toda a ignorância e desinformação do mundo também estão lá.

A realidade é que a tecnologia mais avançada da história conecta todos os seres humanos do planeta, mas também serve para espalhar notícias falsas. Os anti-vacina são ótimo exemplo dessa tragédia: devido a uma campanha de desinformação ideológica e ignorante que levou pessoas sensatas a acreditar em besteiras, agora temos surtos nos Estados Unidos de varíola, uma doença que foi erradicada em diferentes lugares. As vacinas são um dos milagres do progresso humano.

Algumas pessoas compartilham teorias de que a Terra é plana no Facebook enquanto astronautas estão em órbita e temos uma Estação Espacial Internacional. É absurdo, mas mostra que os seres humanos são interessantes por causa da dualidade.

Escrevemos poesia, construímos naves e aparelhos de plástico e metal que transmitem informações pelo espaço. Somos divinos em nossa inteligência e entendimento, mas também somos apanhados nessa ignorância estúpida. Há uma frase que diz: "as pessoas não têm ideias, ideias têm pessoas". E as ideias são como vírus que podem nos infectar ou nos iluminar. Algumas pessoas são infectadas por ideias ignorantes. Acho que é necessário retornar a um consenso, pelo menos quando se trata de certas coisas, como a ciência.

Jason Silva, filósofo, futurista e apresentador dos programas Jogos Mentais e Origins - Divulgação/Experience Club - Divulgação/Experience Club
Imagem: Divulgação/Experience Club

Tilt - Ouvi seu podcast e nele você conversa com especialistas sobre assuntos complexos, como a forma como a maconha age no cérebro. Como conectar as duas pontas: de um lado, pessoas que querem discutir temas profundos e um mundo em transformação e, de outro, pessoas que renegam os aspectos mais básicos da ciência?

Jason Silva - Eu poderia passar o tempo todo reclamando da ignorância ou da desinformação. Mas sei que, muitas vezes, as pessoas são possuídas por informações erradas por terem medo. E medo se propaga como um vírus. E a razão é clara: somos os descendentes dos humanos que mais tiveram medo no passado e faziam planos conforme os movimentos do leão. Os humanos relaxados foram comidos.

Sinto que meu papel como uma voz, como um contador de histórias, é fornecer narrativas cientificamente sólidas, mas embelezadas pela poesia. As pessoas também respondem à inspiração, e ela também se espalha. [Daniel Patrick] Moynihan [ex-senador norte-americano] dizia que "você tem direito a suas próprias opiniões, mas não tem direito a seus próprios fatos".

Mas as pessoas querem mais do que fatos, senão elas ficariam com a lista telefônica. É preciso mostrar as implicações desses fatos de maneira inspiradora e poética. Tento unir ciência e poesia para combater a ignorância.

Tilt - Você acha que a ciência está caindo em descrédito ou, pelo menos, sendo removida de sua posição de ferramenta confiável para buscar explicações para fenômenos em nosso mundo?

Jason Silva - Não, acho que a ciência, quando apresentada a seco, não marca as caixinhas necessárias de narrativa e ressonância emocional que um ser humano precisa. Não somos apenas criaturas racionais, somos criaturas emocionais que nos compreendemos por meio de histórias.

E, quando os fatos científicos são reunidos, dá uma linda história: Big Bang, evolução, organismos multicelulares. A ciência parece quase algo teológico. Alguns cientistas têm medo de se envolver na história porque querem apenas apresentar fatos. Mas, para uma multidão que não é cientificamente orientada, ainda é preciso trazer admiração à forma como os dados são expostos. As pessoas precisam experimentar um êxtase quase religioso para que a verdade científica aterrize com o mesmo poder que a religião.

Tilt - Em Sapiens, Yoval Harari [escritor e professor israelense] escreve que a humanidade é a única espécie capaz de criar sistemas de crenças em que todos se organizam para fazer alguma coisa. A ciência pode ser vista como um sistema de crenças, como o dinheiro ou a comunicação?

Jason Silva - Yoval Harari é um gênio. E Sapiens deixa claro que, se você quer entender humanos, precisa entender como nossos mitos comuns nos trouxeram até aqui. Um chimpanzé não troca uma banana por um pedaço de papel estampado com mitologia nele, mas um ser humano faz isso. É incrível. Mito também é o que faz milhões de seres humanos trabalharem juntos, às vezes sacrificando seu conforto pessoal ou seu interesse pessoal por uma narrativa maior.

Você pergunta se a ciência pode ser cientificamente sólida e, ao mesmo tempo, evocar um senso de mito. Bem, acho que sim. Carl Sagan foi um ótimo exemplo de alguém que poderia falar sobre ciência sem prescindir de fatos objetivos, mas embelezando-os em uma história maior do que nós. E ela pode nos orientar, nos inspirar a ter uma visão comum para irmos além de nossas queixas mesquinhas, nossas guerras estúpidas, e nos unirmos em maravilha, imaginação e pesquisa científica para resolver os mistérios do cosmos.

Tilt - Você é formado em filosofia, mas gosta de falar sobre tecnologia. Como é possível fazer uma conexão entre as duas coisas? Dá para relacionar o novo iPhone 11 e as teorias de algum filósofo?

Jason Silva - Uso a filosofia na maneira como interpreto e contextualizo a tecnologia e a condição humana. Penso no iPhone como uma ferramenta maravilhosa, um dispositivo de comunicação que é mais poderoso do que um supercomputador de 40 anos atrás. Mas a experiência dos filósofos David Chalmers e Andy Clark os leva a crer que o smartphone é uma extensão do nosso aparato cognitivo. E mais do que isso, é literalmente parte de nossas mentes, nossa maquinaria mental.

Eu tenho uma maneira filosófica e romântica de entender as coisas. Como contador de histórias, é assim que tento fazer as coisas acontecerem para os outros. E frequentemente as pessoas dizem que eu as fiz ver as coisas de uma maneira diferente. Por isso, eu quero expandir a profundidade e a amplitude em como as coisas são vistas.

Jason Silva, filósofo, futurista e apresentador dos programas Jogos Mentais e Origins - Divulgação/Experience Club - Divulgação/Experience Club
Imagem: Divulgação/Experience Club

Tilt - Se os smartphones ampliam a capacidade cognitiva e muitas vezes substituem partes dessa capacidade, o que resta em nós que nos torna seres humanos?

Jason Silva - O que faz de nós seres humanos é podermos transferir tarefas cognitivas para ferramentas. Mente e cérebro são coisas diferentes. A mente precisa do cérebro, mas é algo para além dele. A mente surge em ciclos de resposta entre cérebro, ferramentas e os ambientes em que estamos. Os ambientes mediam a mente, e as ferramentas informam nossa função mental. Não acho que a tecnologia sequestre a mente. Eu acho que a tecnologia mostra as maneiras pelas quais a mente é apenas um epifenômeno que excede o cérebro.

Tilt - No programa Jogos Mentais, você mostrava diferentes maneiras como nosso cérebro e nossa percepção podem ser enganados. Por que é tão difícil mostrar às pessoas que o que elas veem não é necessariamente o que acontece no mundo físico?

Jason Silva - Você tem que lembrar as pessoas de que os olhos delas não são janelas. Elas não estão olhando para fora por meio dessas grandes janelas. Os olhos são lentes ópticas que captam fótons, que estão se transformando em sinais elétricos que vão para o cérebro. É ele que interpreta isso e transforma tudo em uma nova imagem. O mesmo com todos os seus outros sentidos. Portanto, é melhor ver seu cérebro como uma caixa de TV a cabo, e o mundo são os cabos que se conectam a ela.

Os sinais do mundo descrevem o mundo, mas, em seguida, o cérebro cria um modelo do mundo. Ele precisa constantemente atualizá-lo de acordo com a realidade. Ainda assim, não tem a mesma resolução da realidade. Sabe quando você comprime um vídeo na internet e o faz ter resolução HD? É uma renderização do mundo que tem resolução suficiente para nos sentirmos totalmente imersos nele. Só que o território real além de nossos mapas provavelmente tem tantos dados que mal conseguiríamos interpretar.

Tilt - Origins também conta a história de instrumentos criados ou dominados pela humanidade, como fogo ou armas. Você acha que essas ferramentas tecnológicas nos trouxeram capacidades cognitivas que não tínhamos antes? Deste ponto de vista, o transumanismo pode ser apenas uma continuação de nossa tradição ou uma ruptura completa?

Jason Silva - Definitivamente. O cérebro responde à resposta. Se você der novos sensores ao cérebro ou ao sistema nervoso, ele receberá novas respostas, o que mudará o grupo de ações possíveis em resposta a esse estímulo. Os relógios inteligentes funcionam como novos sensores em nossos corpos, que dão uma nova visão de nossa saúde. Essas novas informações permitem que nosso cérebro tome medidas para melhorar nossa saúde.

As pessoas fazem uma distinção entre humano e transumano. Eu acho que é a mesma coisa. Os seres humanos são animais que fazem ferramentas e, por definição, esse é um animal que constantemente excede seus limites, porque a ferramenta se torna uma extensão de nós. Assim, ela amplia nosso alcance, nossa validade, nosso impacto e estende a definição do que somos em círculos cada vez mais amplos. E isso é transumano, é o ser que constantemente se transcende.

Tilt - Muitas pessoas pensam que o transumanismo é coisa de ficção científica, mas você já vê isso?

Jason Silva - Você está usando óculos de leitura que já o fazem um ser transumano, porque são ferramentas que aumentam seus sentidos. Um humano primitivo com uma tacape de pedra na mão já era transumano. Como Marshall McLuhan diz, você constrói uma ferramenta e a ferramenta constrói você. Temos estado em um ciclo de resposta com nossas ferramentas desde os primórdios da humanidade.

Transumano não é novo. Você conhece aquela famosa ilustração do Homem Vitruviano [de Leonardo Da Vinci]. Se eu o desenhasse hoje, colocaria um iPhone na mão dele. Afinal, essa é a extensão dele, a memória estendida de sua mente estendida. E eu diria que o iPhone é tão parte da biologia do ser humano quanto sua própria carne.

Tilt - Você acha que da Vinci ficaria lisonjeado por colocar um iPhone no desenho mais icônico dele?

Jason Silva - Eu acho que ele ficaria, sim. Acho que o nosso maior problema é apreciarmos pouco diante da imensa inovação que surge. Se da Vinci embarcasse em um avião 747 moderno, ele provavelmente escreveria um poema enquanto olharia pelas janelas. Enquanto isso, a maioria de nós fecha a janela e vai dormir. Para nossos ancestrais, seríamos como deuses. Mas, assim como nossos contemporâneos, tudo o que fazemos é reclamar que a bateria do iPhone é péssima.

Consideramos que tudo que faz parte do mundo vem de mão beijada e qualquer coisa nova é perturbadora. Gastamos pouco tempo com apreciação.

Tilt - Alguns especialistas falam que, a partir de 2050, poderemos ser imortais, ou estamos prestes a presenciar um novo culto religioso à inteligência artificial. Esse tipo de preocupação eram as mesmas que nossos nossos ancestrais tiveram em seu tempo?

Jason Silva - Bem, eu acho que estamos caminhando para o potencial de criar mais beleza e mais artes. Kevin Kelly, da revista Wired, disse: "Imagine a pobreza dos seres humanos se não criássemos a tecnologia da pintura a óleo a tempo de Vincent van Gogh usá-la ou a pobreza da experiência humana se não inventássemos a tecnologia de instrumentos musicais a tempo de Beethoven".

Então, vejo as tecnologias futuras como instrumentos para possibilidades humanas que não imaginamos. Mas espero que usemos essas novas tecnologias para a criar novos tipos de arte. [Gustave] Flaubert escreveu algo como: "a fala humana é apenas uma chaleira rachada na qual tocamos ritmos rudes enquanto desejamos fazer música que derreta as estrelas". Eu digo que estamos seguindo na direção, e eu uso isso como uma metáfora, para fazer músicas que derreterão as estrelas.

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