Do medo à emoção: médica temeu hostilidade, mas ganhou corrida do Uber
Quando a pediatra Julia Köhler acordou na terça-feira (24) atrasada para o plantão achou que o dia tinha começado mal. Ela vinha de uma rotina intensa de trabalho no Hospital da Luz, na Vila Marina, zona sul de São Paulo, onde está de plantão ajudando a receber os pacientes que chegam em meio à pandemia de coronavírus.
"Era para eu estar às 7h no plantão, saí correndo de casa, pedi um Uber. Na hora que eu entrei no carro, o moço virou pra mim e falou: você trabalha no hospital? Porque eu coloquei o destino como Hospital da Luz. Na hora pensei: putz, que saco, né? Está tendo monte de ataque a profissional da saúde, esse cara não vai querer me levar e eu já estou atrasada", contou a Tilt.
Ao longo da última semana, diversos profissionais da saúde — como médicos, fisioterapeutas, enfermeiros, auxiliares e técnicos de enfermagem — têm sido hostilizados e até agredidos a caminho dos hospitais de São Paulo em que trabalham. Muitos moram longe do emprego, usam transporte coletivo e chegam aos prantos aos hospitais, porque os passageiros temem contato com quem está na linha de frente do combate à covid-19.
"Falei meio assim, com a voz tremendo: trabalho... Ele disse: 'olha aqui, vou cancelar sua corrida'. Nessa hora meu coração disparou e eu pensei: 'Ele não vai me levar'. Mas ele continuou: 'Vou cancelar sua corrida e te levar de graça, tá bom?' Eu agradeci, quase chorando, e ele respondeu: 'A gente tem que se ajudar nessas horas, apoiar o outro. Vocês estão fazendo tanto por nós, vou te levar de graça'", lembra.
O motorista chama-se Caleb. Na descrição do aplicativo ele diz que oferece "viagem gratuita a profissionais da saúde."
Köhler diz que ficou emocionada com o gesto, pois foi "uma das coisas mais legais que aconteceram até agora", desde que o vírus chegou ao Brasil. Segundo ela, a rotina de quem está na linha de frente do atendimento aos pacientes mudou drasticamente nas últimas semanas, o que tem deixado muitos profissionais abalados emocionalmente. Além de terem de lidar com os casos graves e sofrerem com a possibilidade de contaminarem os familiares próximos, eles estão vendo as pessoas roubarem álcool gel, máscara, óculos dos hospitais e terem atitudes desesperadas.
"As pessoas estão um pouco mais conscientes, deixando de ir ao hospital sem necessidade, mas mesmo assim está difícil. Todos os profissionais da saúde com quem converso e nos grupos [de WhatsApps] estão com muito medo e desesperados. É natural ter medo, né? Mas tem muita gente com crise de ansiedade, crise de pânico, chorando... Eu, inclusive. Mas agora estou melhor e tranquila. Eu só pensava que muita gente ia morrer, que não estamos preparados para isso. A gente sabe que faz parte da vida do médico, mas está apavorante. Ninguém quer ver isso e ninguém achava que ia chegar nesse ponto."
Ela conta ainda que isso leva a uma falta de profissionais. "Ninguém mais quer dar plantão, então eu estou dando muitos plantões. Embora na pediatria a situação ainda não esteja tão ruim, a previsão é que daqui para frente piore."
O Brasil teve uma explosão de registros de internação de pessoas com insuficiência respiratória grave depois da primeira notificação de um paciente com coronavírus no país. Desde o primeiro caso de covid-19, notificado no dia 25 de fevereiro, o número de internados com sintomas como febre, tosse, dor de garganta e dificuldade respiratória foi dez vezes maior do que a média histórica de hospitalização nos meses de fevereiro e março, segundo o pesquisador Marcelo Ferreira da Costa Gomes, do sistema InfoGripe da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).
Apesar do cenário difícil, a médica, que não costuma postar fotos do trabalho nas redes sociais, compartilhou a história no Instagram. "Foi a coisa que mais repercutiu, então eu acho que é realmente uma coisa muito legal para as pessoas verem umas ajudando as outras, sendo altruístas."
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