Vale-tudo digital? Influenciadores polemizam pandemia para ganhar likes
Sem tempo, irmão
- Influenciadores digitais aproveitam a pandemia para gerar conteúdo polêmico
- Alguns criam desafios online perigosos, como o de lamber privadas
- Outros colocam as pessoas em risco, como dizer ter coronavírus durante um voo para gravar um vídeo
- Falta responsabilidade em meio a uma situação tão grave, avaliam especialistas
Duas horas depois de um voo do Canadá para Jamaica decolar em fevereiro, o rapper Potok Philipe disse a outros passageiros que vinha da China e estava com coronavírus. Ele queria postar um vídeo da pegadinha em suas redes sociais, mas conseguiu outra coisa. O avião deu meia volta, o que atrasou a vida de 243 pessoas, e, no desembarque, ele foi preso.
A atitude de Potok não é algo isolado. Influenciadores digitais de todo o mundo, e em menor grau, outras celebridades da internet brasileira tomaram atitudes parecidas.
Especialistas entendem que fazer tudo para aparecer é falta de responsabilidade. Os famosinhos brasileiros discordam. Surfar na pandemia é ótima estratégia de marketing, dizem.
Sem noção
Aspirante a rapper, Potok Philipe (apelido de James Potok, de 28 anos) nunca pisou na China, mas disse ter visitado Hunan, província chinesa distante apenas 300 milhas de Wuhan, onde o surto de coronavírus começou. A história colou, e cerca de dez minutos depois, comissários de bordo da WestJet vestindo máscaras o isolaram das outras pessoas.
Assim que o avião retornou a Toronto, Potok foi submetido a exames, que deram negativo para coronavírus. Logo após foi preso pela polícia, teve o celular onde o vídeo estava confiscado e indiciado por dois crimes.
Você pensa que ele se arrependeu? Dois dias depois, lá estava ele falando em um story do Instagram. "Não existe esse negócio de publicidade ruim. Aguardem por novas músicas e videoclipes."
A pegadinha frustrada do músico rolou antes de a covid-19 ser considerada uma pandemia e foi a precursora de coisa ainda pior.
Ava Louise, famosinha de 21 anos do TikTok, apareceu em um vídeo lambendo a privada do banheiro de um avião. Estava lançado o Coronavirus Challenge. "Não posso pegar coronavírus (...) Assim como os gays, loiras ricas são imunes", acrescentou. Depois da repercussão negativa, afirmou que o desafio nunca foi real.
Teve gente que entrou na modinha. Um deles foi Larz, um influenciar que consolidou sua fama por participar do desafio de lamber sorvete no supermercado e devolver o pote para o refrigerador. Fora da internet, ele ficou famoso mesmo por dizer em um programa de TV que não fala com a mãe por ela não ter tantos seguidores.
Dias após dar duas belas lambidas em um vaso sanitário, ele publicou um vídeo falando que testou positivo para coronavírus.
Para reforçar a narrativa de que a brincadeira nunca existiu, Ava Louise disse que é "melhor amiga" de Larz e o vídeo era antigo. Tudo fazia parte do esquema para zoar geral.
Louise chegou a explicar suas intenções ao site Business Insider. "Eu só queria mais atenção do que essa vadia da corona, mas ela é boa. Então eu capitalizei sobre ela. E agora eu sou tipo notícia global." Até agora, ela não foi responsabilizada fora da internet.
O mesmo não se pode dizer de Cody Pfister, de 26 anos. Ele gravou um vídeo e foi indiciado por terrorismo. Por que? Apareceu lambendo artigos de higiene pessoal de um Walmart do Missouri. Para as autoridades, ele estava "conscientemente causando uma falsa crença ou medo de que exista uma condição que envolva perigo à vida".
"É algo impensado, totalmente imbecil de ser feito", diz Diogo Cortiz, pesquisador e professor de ciências cognitivas da PUC-SP. "São estratégias para criarem uma contra-regra, para criarem uma contracultura, como se estivessem rompendo com o que a OMS [Organização Mundial da Saúde] está dizendo. Isso traz um risco, porque pessoas menos informadas podem começar a comprar essas ideias de que a pandemia não é algo tão sério assim, que é uma manipulação e que dá para sair na rua."
"É gravíssimo", diz Raquel Recuero, professora de comunicação da Universidade Federal de Pelotas. "Muitas vezes, influenciadores usando seu espaço de grande audiência na rede para difundir informações engraçadas e até mesmo sarcásticas, mas que a rede não entende dessa maneira. E isso acaba influenciando no comportamento dessa audiência."
Para Cortiz, os influenciadores não entendem "que os interlocutores desse conteúdo são pessoas de todos os níveis". "Há pessoas muito bem informadas que vão falar que esse conteúdo é uma porcaria, mas há pessoas menos informadas que vão achar interessante e podem comprar essa ideia."
Esse imperativo da visibilidade que a gente tem hoje acaba criando uma pressão para gerar 'likes' e muitas vezes esses influenciadores acabam não fazendo uma curadoria do próprio conteúdo e acabam levando as pessoas a ter um comportamento prejudicial
Raquel Recuero
Para eles, esse comportamento é impulsionado pelo funcionamento das plataformas sociais.
"Como toda lógica das plataformas é em torno da conversação social em torno dos temas do dia, o assunto do dia é a pandemia. Isso faz com que se precise de curtidas, de compartilhamento, de comentário. Todo mundo que está tentando ser influenciador acaba abordando essa temática. O problema é a forma como isso é feito", reflete Adriana Amaral, professora da pós-graduação em ciências da comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
No Brasil, os influenciadores não chegaram a lançar desafios malucos, mas viram na epidemia uma boa oportunidade para fazer propaganda.
Mary Salvaya costuma criar conteúdo sobre maternidade e costuma usar sua filha como garota-propaganda. Na semana passada, postou no Instagram uma foto da criança vestida com um pijama em forma de unicórnio. A publicação foi tratada como uma "dica da Clarinha para uma quarentena mais legal", mas era na verdade propaganda de uma marca de roupas infantis.
Salvaya não esconde a intenção. "No post, comecei a legenda usando a frase 'pegue seu pijama favorito' e subliminarmente minha filha estava com o de uma marca famosa. Começar com aquela frase leva empatia aos que não tem igual. [Os que não têm] podem comprar online e receber no conforto do seu lar caso queiram."
Outras "celebs" digitais usaram vídeos com cuidados de higiene para não se contaminar com coronavírus para anunciar cosméticos. Em um posts no Instagram da consultora de marketing digital Leandra Guedes Silva sobre um apartamento decorado, incluiu entre as hashtags algumas como #coronavirus, #quarentena e #fiqueemcasa para aparecer nas buscas de usuários por assuntos relacionados à pandemia.
"Com certeza é uma estratégia, até porque não se fala em outra coisa. Sendo assim, temos que encontrar maneiras de inovar e criar conteúdo que alcance as pessoas", afirmou Silva a Tilt. "Eu acredito que essa estratégia é válida e até necessária para uma pandemia como o coronavírus. Tanto o marketing tradicional como o digital visa alcançar pessoas que tenham ou não interesse em um tópico, produto ou serviço, ou que estejam em busca de informação ou conhecimento."
"Não é tirar proveito de um momento trágico como esse, mas sim uma alerta", explica. "Digamos que a pessoa faz uma foto em um ambiente decorado, mas ao mesmo tempo está dando dicas do que fazer com o seu tempo, ou falando sobre como se sente e como o momento atual faz com que ela tenha que ficar ali naquele local, não vejo nada de errado. Pelo contrário, vejo como algo positivo."
Em um dos posts, que passa longe de ser educativo, ela diz acreditar que "nós nunca apreciamos tanto o fato de ter uma varanda em um momento tão difícil onde mal se pode sair de casa" e cita as empresas de decoração de interiores.
Para Recuero, ações como essa criam um ruído. "Evidentemente que é preciso ter responsabilidade no que se publica." O professor da PUC-SP concorda.
Os produtores de conteúdo devem ter senso crítico e entender a posição deles. Entender que o papel deles pode ser de entretenimento, mas eles devem ser responsáveis e não incentivar situações que coloquem as pessoas em risco e não usar a pandemia como uma estratégia de marketing
Diogo Cortiz
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