Topo

Vacina brasileira de coronavírus avança rapidamente, mas vai demorar 3 anos

Médico Jorge Kalil, chefe do Laboratório de Imunologia do Incor - Arquivo Pessoal
Médico Jorge Kalil, chefe do Laboratório de Imunologia do Incor Imagem: Arquivo Pessoal

Helton Simões Gomes

De Tilt, em São Paulo

06/04/2020 04h00

Sem tempo, irmão

  • Há uma corrida internacional em curso para o desenvolvimento da vacina contra coronavírus
  • A iniciativa brasileira é conduzida por um laboratório de imunologia da USP
  • Cientistas adotaram uma estratégia similar à da criação das vacinas de HPV e de hepatite

Cientistas brasileiros trabalham desde fevereiro no desenvolvimento de uma vacina para o novo coronavírus, que causa a Covid-19. Já fizeram avanços importantes, que os deixam próximos do início dos testes, mas a chegada dela ao mercado deve levar três anos.

"É desolador, mas o que se pode fazer? Eu gostaria que isso ficasse pronto em um mês. Mas tem que fazer os experimentos. Teoricamente, eu te dou a vacina amanhã e você produz, mas antes eu tenho de ver se funciona", afirma Jorge Kalil, médico de 66 anos que chefia o Laboratório de Imunologia do Incor (Instituto do Coração), da Faculdade de Medicina da Universidade da Universidade de São Paulo (FMUSP).

Kalil lembra que, mesmo que outros países cheguem a um resultado antes, é muito importante haver desenvolvimento de uma vacina nacional para que o Brasil não fique à mercê de outros para atender a população. "Imagina que o governo brasileiro desenvolva uma vacina. Você acha que vamos vender para os EUA? Não, vamos fazer vacina e imunizar os brasileiros."

Os efeitos do coronavírus são algo que o médico conhece bem, não só por estar à frente do projeto de elaboração da vacina. Seu filho pegou Covid-19 e, por isso, Kalil foi colocado em isolamento social por precaução. Isso não significa que ele passou a ficar mais perto da família. Sua rotina de trabalho é de até 14 horas por dia. "Só dá tempo de me alimentar e dormir. Pergunta para minha esposa. Ela fala que eu não saio do computador, que eu não falo com ninguém", contou à reportagem de Tilt.

Ele disputa uma corrida internacional. Ao redor do mundo, há diversas iniciativas que buscam a vacina, cada uma em um grau de desenvolvimento. Kalil estima que os laboratórios que começarem a testar em humanos devem concluir seus trabalhos dentro de um ano e meio a dois anos. A expectativa é similar à da OMS (Organização Mundial da Saúde). "A vacina ainda demora pelo menos 18 meses. Enquanto isso, reconhecemos que há uma necessidade urgente de terapêutica para tratar pacientes e salvar vidas", disse o diretor-geral da entidade, Tedros Adhanom Ghebreyesus, na semana passada.

Exemplos disso são a Universidade de Pittsburgh, que anunciou ter chegado à fase de teste em camundongos, e a Johnson & Johnson, que planeja iniciar testes em humanos em setembro.

Como é elaborada a vacina brasileira?

Sabendo da urgência da situação, o Incor adotou uma estratégia que acelerasse a criação da vacina, conta Kalil. A ideia é criar uma partícula semelhante ao coronavírus, chamada de VLP (sigla em inglês para "virus-like particle"), que funciona como um vírus oco, sem o material genético do coronavírus dentro. Isso tira a capacidade de transmissibilidade da Covid-19, o que torna seguro usar em vacinas.

"É uma forma rápida de fazer e bastante imunogênica, desencadeia boa resposta imunológica do indivíduo", afirma, acrescentando que esse método já foi adotado outras vacinas, como as de papiloma vírus (HPV) e hepatite.

Algumas abordagens seriam mais demoradas. "Fazer com vírus atenuado levaria anos, porque ele tem que estar fraco, mas não morto. É um problema testar se está fraco para todo mundo."

Outras não possuem histórico comprovado de que dão certo. É o caso da vacina desenvolvida nos Estados Unidos, que usa uma ferramenta genética para reproduzir uma sequência de DNA. Ela insere partículas sintéticas de mRNA (o RNA mensageiro) do vírus no organismo humano, o que leva o corpo a produzir anticorpos contra o invasor.

Usar VLTs, porém, produz respostas mais robustas do organismo. Por isso, os cientistas estão focando em inserir no VLT a espícula, a parte usada pelo vírus para infectar células humanas, para que o organismo gere anticorpos contra ela.

Se você inibe o vírus de entrar, inibe a multiplicação viral. O vírus não consegue se multiplicar fora da célula, não tem o maquinário para fazer síntese de proteína e tem que usar o da célula que ele vai infectar
Jorge Kalil, médico do laboratório de imunologia do Incor

Entenda as etapas

Desde fevereiro, os cientistas estão trabalhando intensamente para montar essa vacina e estão perto de concluir essa etapa. Estão debruçados justamente sobre a sintetização dos peptídeos que farão parte das proteínas que constituirão a espícula. Isso não quer dizer que a linha de chegada está próxima.

Com a vacina construída, passam a traçar hipóteses de quantos aminoácidos (conjunto de peptídeos) a proteína precisa ter para gerar uma quantidade de anticorpos que neutralize o vírus.

Feito isso, é hora de avançar para a fase experimental. Submetem células de um animal à vacina e verificam se funcionou. Como? Extraem o soro do animal supostamente imunizado e o colocam em células suscetíveis ao vírus. Depois, injetam o vírus e analisam se os anticorpos bloqueiam sua ação.

Se der certo, passam para o teste em camundongo —não é qualquer um, já que biologicamente eles não são suscetíveis ao coronavírus. Selecionam um ratinho geneticamente modificado para ter uma enzima conversora que funciona como receptor do vírus. O bichinho é vacinado e submetido ao vírus para ver se ficou doente ou não.

Se o resultado for positivo, passam a analisar como a vacina será produzida industrialmente. Calma, esse ainda não é o fim da empreitada. Enquanto isso, passam a testar em animais qual será a dose ideal para avaliar o grau de toxicidade. Essa análise é feita órgão a órgão.

Só então testam em seres humanos.

Ufa, deu para entender como é complexo? É por isso que demora. "Eu diria que dois anos para ver se a vacina funciona, depois vai ter de produzir. Eu acho que a nossa, para estar disponível, três anos", responde Kalil.

Caminho incerto

Apesar de o trabalho parecer seguir uma trajetória bastante previsível, Kalil afirma que o caminho da ciência é mais incerto do que parece. "Parece uma receita de bolo. Você pega ovos, duas colheres de farinha, açúcar, aí mexe. Não é nada disso, não tem receita do bolo. Você tem que bolar o modo que vai fazer, quais são os riscos e fazer depois os experimentos em animais. Exige um trabalho intelectual enorme."

Todo o processo é importante, porque a vacina é o método mais seguro para imunizar a população. "Você só consegue controlar se vacinar a população se mais de 60% ou 70% tiveram a doença e ficarem imunes. A gente está controlando agora para não ter uma explosão de sobrecarga do sistema de saúde que mate muita gente. É o famoso achatamento da curva. Isso não significa que a gente vai controlar a doença."

Ele critica líderes políticos que exigem uma vacina urgentemente. "O [Donald] Trump quer a vacina para ontem, mas ele não fez nada para preparar o país dele. Sabe por que a ciência nunca vai bem com a política? É que a ciência é o conhecimento da verdade das coisas. A política é o que eu vou dizer para que o meu eleitor fique satisfeito e vote em mim na próxima eleição", disse, em referência a uma cobrança feita pelo presidente dos EUA diretamente aos cientistas do país.

SIGA TILT NAS REDES SOCIAIS