Quarentena: entenda a polêmica do monitoramento de celular no Brasil
O monitoramento da geolocalização dos celulares para conferir se as pessoas estão descumprindo o isolamento social do coronavírus virou motivo de disputa entre o presidente, Jair Bolsonaro (sem partido), e o governador de São Paulo, João Doria (PSDB).
O governo federal anunciou um acordo com as operadoras de telefonia depois do governo paulista, mas voltou atrás após surgirem críticas das redes sociais contra a iniciativa de Dória, como a de um dos filhos do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).
Parlamentares aliados de Bolsonaro e eleitores de direita afirmaram que o monitoramento de celulares invadia a privacidade da população. Quando Dória afirmou que poderia usar a polícia caso o nível de isolamento do estado não subisse para 60%, acusaram de desrespeito ao direito constitucional de ir e vir. Até a hashtag "DitaDoria" foi usada nas postagens.
Afinal, como o monitoramento é feito? É possível saber quem são as pessoas que saem de casa? Há diferença entre o que o governo federal planejava e o modelo aplicado em São Paulo? Tire estas e outras dúvidas abaixo.
Quais empresas estão envolvidas e onde atuam?
- O governo federal havia firmado uma parceria com cinco operadoras: Algar, Claro, Oi, Vivo e TIM.
- Já o governo de São Paulo fechou com quatro delas: Claro, Oi, Vivo e TIM. A cidade do Rio de Janeiro tem parceria com a TIM.
- O Recife tem acordo com a In Loco, assim como o governo de Santa Catarina. Depois de chamar atenção, a empresa que usa a geolocalização de celulares para enviar publicidade passou a fornecer dados sobre todos os estados.
Como funciona o monitoramento?
Em parceria com as operadoras de telefonia, o monitoramento mede a concentração de pessoas em uma região, percebendo quais aparelhos estão conectados às suas antenas. Para medir o deslocamento de um lugar a outro, elas verificam os celulares que em um certo período se conectaram a diferentes estações de radiobase (ERB).
A partir daí, as empresas criam "manchas de calor" das regiões que apresentam maior aglomeração de pessoas e outras "manchas" que mostram apenas o deslocamento de usuários. Como cada operadora só monitora seus clientes, todas devem atuar em conjunto para se obter o panorama do isolamento.
Na cidade do Rio, por exemplo, apenas a TIM fornecia essas informações. Ainda que ela obtivesse uma amostra boa, a quantidade de linhas acompanhadas não passava de 20% dos números do DDD 21, total de clientes da operadora na região.
No caso da In Loco, a startup brasileira puxou dados públicos das operadoras, usados na publicidade, para analisar o comportamento de 60 milhões de celulares brasileiros (a população estimada do Brasil hoje é de 211 milhões, segundo o IBGE). Ela usa uma tecnologia que interpreta as geolocalizações para dizer quantas pessoas estão "estacionadas", ou seja, em casa.
Isso virou o IIS (Índice de Isolamento Social), medido diariamente, de forma automatizada (bot), para estabelecer a razão entre quem fica em casa e quem se desloca. Normalmente, você precisa ativar a função de geolocalização — alguns pedem autorização para enviar os dados. Mas, quando isso acontece, eles se tornam públicos.
É possível saber quem são as pessoas que saem de casa?
Segundo os responsáveis, não. Os dados usados para mostrar concentrações e deslocamento são anonimizados. Isso quer dizer que essas informações não podem ser usadas para identificar quem são as pessoas que permanecem em sua casa ou estão na rua. Elas são apenas pontinhos dentro das "manchas de calor".
O governo de São Paulo afirma que não é possível saber detalhes como nome, idade, gênero nem se o celular pertence a uma pessoa ou empresa. O máximo que se sabe é se houve cumprimento ou não do isolamento social por bairro.
Como o monitoramento acompanha o isolamento social?
Em São Paulo, apenas as 47 cidades do Estado com mais de 200 mil habitantes são monitoradas. A ideia é expandir para todas aquelas que tiverem a partir de 30 mil moradores.
Primeiro, o sistema identifica onde seria a casa do indivíduo. Isso é feito ao monitorar a geolocalização do celular entre 22 horas de um dia e as 2 horas da madrugada do dia seguinte. Assim, é possível detectar onde a pessoa dormiu.
A partir daí, o sistema acompanha a conexão do celular com estações de radiobase ao longo do dia. Qualquer deslocamento superior a 200 metros a partir do ponto em que o cidadão dormiu é considerado um descumprimento à quarentena. Como esse processo é feito para todos as linhas de celular, é possível elaborar um índice de respeito ao isolamento social.
O monitoramento viola algum direito dos usuários?
Essa questão é mais controversa. Para Diogo Moyses, coordenador do programa de Telecomunicações e Direitos Digitais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), as operadoras deveriam ter pedido autorização aos clientes antes de compartilhar seus dados com os governos.
"Em tese, eles [os consumidores] deveriam primeiro autorizar o uso de dados, e não a empresa usar e, depois, se o cliente quiser, pedir à companhia para que ela não os use", diz.
Segundo Moyses, não há norma legal que autorize empresas de telecomunicação a coletar dados desse tipo no Brasil. Essa proposta, portanto, configura uso abusivo e desproporcional de dados, diz ele.
Na opinião da desembargadora Ivana David, não há violação de lei se as empresas de telefonia não acessarem os dados cadastrais. "A geolocalização com indicação da linha e seu proprietário só é possível para fins criminais e com prévia autorização judicial", diz. "Só a mancha não viola absolutamente nada", afirma.
Esse tipo de acompanhamento aconteceu em outros lugares do mundo?
Sim, vários países implantaram seus próprios sistemas de monitoramento via celular, como África do Sul, Áustria, Coreia do Sul, Espanha, Estados Unidos, Itália e Israel.
Na Coreia do Sul, o governo estabeleceu extenso programa de rastreamento de infectados pelo novo coronavírus. Lá, quando uma pessoa testa positivo para o vírus, o governo tenta contatar quem esteve com ela e os lugares pelos quais ela passou antes do diagnóstico. Autoridades locais enviam mensagens de texto com informações, como idade, gênero e onde a pessoa esteve, mas sem dizer sobre quem se trata.
Em alguns casos é possível identificar quem é o doente. As mensagens informam qual loja do shopping a pessoa visitou e se ela usava máscara ou não. Tornar público a rotina de alguém, e com riqueza de informações, é alvo de críticas por ativistas de direitos humanos da Coreia do Sul.
Também há grandes empresas de tecnologia oferecendo sua infraestrutura para monitoramento.
A Apple anunciou nesta terça-feira (14) que lançou uma ferramenta baseada no Apple Maps que ajudará governos a enxergarem a mudança no volume de pessoas dirigindo, andando ou usando o transporte público. A empresa afirma que o Maps não associa dados de mobilidade ao ID da Apple do usuário, e que não mantém um histórico de onde o usuário esteve.
Antes dela, o Google publicou relatórios estatísticos com base em dados de telefones celulares sobre como o confinamento devido à pandemia do novo coronavírus em até 131 países —Brasil incluso-- está afetando a mobilidade das pessoas. A empresa também diz ter usado dados anonimizados.
O Facebook, que detém informações de 130 milhões de pessoas no Brasil, soltou três mapas com a movimentação dos brasileiros durante a pandemia:
- sobre a probabilidade de pessoas de uma área entrarem em contato com grupos de outra (ajuda a prever onde os casos de covid-19 podem aparecer);
- sobre tendências de movimento (mostra a adesão regional ao isolamento social);
- sobre conexão social (amizades) para ajudar a prever propagação da doença e áreas mais atingidas.
Esse monitoramento funcionaria para combater crimes?
Não, a tecnologia permite saber que existe uma aglomeração, mas não quem são as pessoas que estão nela. Por isso, esse tipo de monitoramento não tem como finalidade o combate à criminalidade, de acordo com o governo paulista. No caso da segurança pública, há um outro sistema, de câmeras inteligentes (chamado Detecta), em atividade em São Paulo.
Ele não teria a ver também com os atuais sistemas de bloqueio de sinais nos presídios, que não são capazes de identificar celulares individualmente. O bloqueador desvia o sinal emitido pela antena de transmissão (chamadas de estações de rádio base) para sua base.
Para isso, os equipamentos usam ondas eletromagnéticas, que interferem no sinal de celular e também em outros sistemas de telecomunicação de uma certa área física. Mas, a técnica tende a interferir também no sinal de pessoas de fora dos presídios, principalmente naqueles localizados em áreas densamente povoadas.
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