UOL Debate: "Uso de dados na pandemia moldará futuro da nossa privacidade"
O que empresas e poder público decidirem durante a pandemia de coronavírus sobre o uso dos nossos dados pessoais pode definir o futuro da privacidade, avaliam especialistas que participaram do UOL Debate nesta quarta-feira (29). Eles discutiram o monitoramento de informações do celular e outras aplicações envolvendo dados pessoais do cidadão no combate à covid-19. Para os participantes da conversa, o Brasil passa por um teste de fogo que faz discussões profundas avançarem a toque de caixa.
"O fato de a gente estar em uma pandemia é uma carta-branca para fazer o que se bem entende? Dificilmente. A gente teve que aprender muita coisa em dois, três meses durante essa pandemia que a gente aprenderia em uma década", afirmou Renato Vieira Caovilla, advogado especialista em proteção de dados.
O programa reuniu ainda Laura Schertel, professora da Universidade de Brasília (UnB); Maria Cecília Gomes, pesquisadora em privacidade na Fundação Getúlio Vargas (FGV); André Ferraz, executivo-chefe da In Loco Media; e Rafael Zanatta, coordenador de pesquisa do Data Privacy Brasil.
Desde que o coronavírus virou uma emergência nacional, diversas iniciativas surgiram pelo país, do Recife ao Estado de São Paulo, passando por um ensaio do Governo Federal até desembocar na iniciativa das próprias operadoras de telecomunicação. Todas coletam os dados gerados pelo seu celular e geram índices de isolamento social.
Também surgiram métodos que parecem coisa de ficção científica, como o contact tracing. Nele, o celular "dedura" aparelhos com que teve contato. Assim, é possível detalhar pessoas que se aproximaram de alguém infectado. Essa tecnologia conta com o apoio de gente grande, como Google e Apple.
Ainda que estejamos no meio de uma emergência de saúde, decisões atropeladas tomadas agora podem ecoar no futuro, refletem os especialistas.
Sim, estamos vivendo uma crise de saúde pública, mas a gente não pode transformar isso em uma crise de liberdades civis. Eu não sei quanto o titular do dado tem consciência de que suas informações podem ser compartilhadas com outras pessoas e como isso pode gerar constrangimentos
Maria Cecília Gomes, pesquisadora de privacidade da FGV
Ele ressalta ainda que, para chegar ao consentimento, é importante mencionar que qualquer tecnologia implementada deixe claro os riscos jurídicos, éticos e técnicos associados aos titulares de dados.
Já há casos da exploração de dados sendo contestadas na Justiça. Durante a pandemia, o uso indiscriminado de dados pessoais não foi apenas usado no combate ao coronavírus. Uma medida provisória assinada pelo presidente Jair Bolsonaro obrigava as teles a enviar dados de seus clientes (nome, número de telefone e endereço) ao IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para a confecção da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua.
Questionada no STF (Supremo Tribunal Federal), a MP foi derrubada pela ministra Rosa Weber por ser ampla demais.
"A MP falhou em esclarecer para a população quais pesquisas seriam feitas e por que elas seriam importantes para a covid. O próprio IBGE explica que as pesquisas são amostras, utilizam dados de 200 mil brasileiros. Não ficou claro porque os dados de todos os cidadãos estavam sendo coletados. Essa desproporção entre os dados, que supostamente seriam necessários, e os dados requeridos assustou um pouco", explicou Laura Schertel, professora da UnB.
Evitar esse atrito institucional é um dos aprendizados que o Brasil tira dessa pandemia.
Durante o debate, os especialistas mencionaram que já há no país salvaguardas legais aos dados pessoais dos cidadãos. Isso, ainda que a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) só entre em vigor em agosto deste ano.
Quando a gente fala em proteção e privacidade de dados, estamos falando de direitos que estão na legislação brasileira
Carlos Affonso, professor da UERJ e colunista de Tilt
"É bom a gente sempre lembrar que, independentemente de não ter a LGPD em plena vigência, já há quase 40 leis sobre o tema em vigor no Brasil", lembra Gomes, pesquisadora de privacidade da FGV. Entre elas, estão a própria Constituição Federal, o Marco Civil da Internet e o Código de Defesa do Consumidor.
Os especialistas poderão que o Brasil poderia contar com outros instrumentos regulatórios neste momento. Um deles é a ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados), que serviria como xerife da privacidade no país, mas teve sua vigência adiada. A ANPD poderia, por exemplo, orientar na construção de políticas públicas e fiscalizar caso órgãos do governo desrespeitassem regras.
Esse debate sobre proteção de dados e privacidade chega com certo atraso ao Brasil, diz Schertel, da UnB. "Essa é uma história que o mundo viveu desde a década de 70 e o Brasil está vivendo agora."
Mas é bom você se acostumar com isso, porque toda essa discussão veio para ficar. Ainda mais porque tecnologias que usam dados para monitorar pessoas estão surgindo aos montes.
Durante o UOL Debate, os especialistas explicaram diversas delas. Há desde os mapas de calor (análises cartográficas que mostram o deslocamento e concentração das pessoas com base em dados do celular) até o contact tracing.
A empresa brasileira In Loco criou um método próprio. Ela possui tecnologia embarcada em aplicativos de outras empresas que monitoram os sensores do celular para saber se alguém saiu de casa. Wi-fi, bluetooth, GPS e até os recursos da bússola são usados pela empresa.
"Esse serviço só é acionado caso o usuário dê o consentimento. E se a gente vai dar um novo fim para o dado, a gente precisa de um novo consentimento dessa pessoa", diz André Ferraz, CEO da In Loco.
Segundo os especialistas, o debate em torno dessas ferramentas é importante até para mostrar as limitações da tecnologia. Diferentemente do que muita gente acredita, por exemplo, desligar o GPS do celular não impede que o sujeito tenha o smartphone monitorado, explica Ferraz:
A tecnologia em si consegue funcionar sem o GPS, mas isso não significa que a gente coleta o dado se você desligar o GPS. A gente usa esse momento em que se ativa ou desativa a localização como um sinal de que o usuário não quer a coleta
Ele acrescenta que, ainda que muita fé seja depositada nela, as diversas tecnologias não são isentas de falhas. "Se for usado dados de GPS para fazer contact tracing no Brasil, um país que tem muitos prédios, vai apontar que você teve contato com todo mundo do lugar onde você mora, mesmo que você não tenha tinha contato com todo mundo", exemplificou.
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