Contact tracing: ideia de monitoramento da Apple e Google é a definitiva?
Sem tempo, irmão
- Sistema de Apple e Google promete ajudar a controlar o novo coronavírus
- Recurso leva privacidade a sério, mas especialistas consideram adoção arriscada
- Para o Brasil, risco é maior por falta de agência reguladora de dados
Um download e uma autorização. Com duas ações, seu smartphone poderá te mandar uma notificação para dizer que você esteve perto de alguém que está infectado com o novo coronavírus.
Esta é um resumo do sistema desenvolvido em conjunto por Apple e Google que autoridades nacionais de saúde poderão usar para realizar o "contact tracing", nome dado a esse tipo de monitoramento.
A expectativa das duas empresas é que o sistema —que permitirá trocas de dados entre celulares dos sistemas iOS e Android— tenha grande adesão popular e ajude na identificação anônima dos infectados com covid-19.
Embora especialistas ouvidos pela reportagem tenham elogiado a iniciativa, ainda há dúvidas sobre a extensão de seus "poderes" no nosso cotidiano, como a privacidade, o controle governamental e a extensão de seu alcance.
1) Bluetooth é a raiz da ferramenta; GPS ficou de fora
Uma vez instalado e com o consentimento do usuário, o aplicativo usará somente no celular o recurso de Bluetooth —que troca dados sem fios— para registrar o contato com outros celulares que tiverem instalado e consentido com o uso do app. Dados de localização do GPS foram deixados de fora.
Por meio do Bluetooth, os telefones trocarão uma chave de identificação anônima, que não traz informações sobre as pessoas ou seus smartphones.
Esse código ficará armazenado na memória dos aparelhos. Caso o dono de algum desses celulares teste positivo para a doença, ele deve inserir a informação no aplicativo, que analisará as chaves armazenadas na memória e notificará os celulares correspondentes com esses dados:
- O dia que o contato ocorreu;
- Quão longo foi o contato;
- Qual a força do sinal Bluetooth do contato.
Como funcionará o sistema de rastreamento de contato
Não há envio de nomes, número de telefone ou identidade do celular ou qualquer outro identificador da pessoa doente. Mesmo o código anônimo trocado entre os smartphones não é fixo, o que ajuda a proteger a privacidade dos usuários.
"Identificadores de Bluetooth aleatórios são trocados a cada dez a 20 minutos, para prevenção de rastreamento. As notificações de exposição (a alguém com a doença) são feitas apenas no aparelho e sob controle do usuário", informam as empresas.
2) Governos têm palavra final
No último dia 4 de maio, as empresas lançaram a API que possibilita a troca de informações entre smartphones iOS e Android por meio de aplicativos das autoridades de saúde pública. Apenas a autoridade nacional de cada país poderá usar o recurso, o que significa que o Ministério da Saúde é quem adotará ou não a funcionalidade.
As empresas não têm previsão quando os primeiros apps do gênero serão lançados. Segundo o Google, o governo federal recebeu todas as informações necessárias para a implementação da tecnologia.
Em contato com Tilt, o Ministério da Saúde informou que "está em conversa com as empresas de tecnologia para avaliar o projeto que baseado em Bluetooth dos dispositivos móveis".
"Contudo, está em estudo como garantir a proteção à privacidade dos dados dos brasileiros, e como promover a interoperabilidade com as plataformas de gestão da covid-19", complementa a nota oficial.
O atual aplicativo oficial do governo, Coronavírus SUS, tem função informativa, não de controle de casos, mas mesmo assim traz riscos à privacidade especialmente nos quesitos transparência e segurança, de acordo com uma avaliação técnica do InternetLab.
3) Bom no papel, mas privacidade fica em xeque
Embora considere a adoção desta tecnologia é pouco adequada ao contexto brasileiro, Mariana Valente, diretora do InternetLab e pesquisadora em direito e tecnologia, diz que a postura de Apple e Google é positiva.
"A documentação que as empresas têm apresentado é uma das coisas mais interessantes, porque elas estão tentando seguir protocolos de anonimização", analisa.
Fabro Steibel, diretor executivo do ITS-Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro), compartilha desta visão, mas vê com ressalvas o uso do sistema, mesmo que ele traga boas proteções de privacidade.
"Em termos de anonimização e minimização, é razoável. Mas a gente ainda não entendeu a dimensão disso (da pandemia). O risco é muito grande, esse é o problema", define Steibel.
O governo prorrogou a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) e não nomeou a ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados), que é quem poderia regulamentar, fiscalizar e garantir que os princípios serão cumpridos. Sem isso, acho que é uma interferência na liberdade das pessoas que coloca riscos, mais que benefícios
Mariana Valente
Steibel vai na mesma linha. "Se você ver o julgamento da MP do IBGE, você vai ver claramente que o Judiciário se pronunciou e seria contra isso. Mesmo que a LGPD não tenha vigência, há um problema de proporcionalidade e finalidade", argumenta.
O diretor executivo do ITS-Rio diz não ser contra a implementação de um recurso destes, mas que prefere que a proteção de dados esteja regulamentada antes de o rastreamento ser adotado em larga escala.
Após a primeira fase por aplicativos, as empresas planejam implementá-lo nos próprios sistemas operacionais, sem a necessidade de um app governamental. Apple e Google dizem que o contact tracing é de uso temporário e afirmam que irão desativar o sistema assim que cada região não precisar mais dele.
Na concepção original do sistema, a localização dos usuários por GPS seria usada para o "contact tracing". Isso seria opcional e um extra ao compartilhamento de chaves por Bluetooth, mas ficou de fora da API final porque as empresas definiram que privacidade é prioritária.
Além de potencialmente mais invasivo em termos de privacidade, a geolocalização apresenta problemas de precisão. Para Valente, até o sistema de Bluetooth não é 100% seguro. "Nada é completamente anonimizado, mas dá para chegar perto."
Se decidir adotar a tecnologia, o governo federal precisará respeitar regras de privacidade, segurança e controle de dados determinadas por Apple e Google. As duas empresas afirmam que não terá acesso às informações relacionadas aos usuários do app.
4) Vai funcionar em muitos celulares, mas não todos
O Google diz que os aplicativos compatíveis com Android funcionarão na versão 6.0 (Marshmallow) do Android em diante. Ou seja, qualquer celular Android comprado nos últimos cinco anos receberá a novidade.
Só tem uma desvantagem: a soma de todas as versões do sistema do Google anteriores à 6.0 somam 25% dos celulares em uso, segundo dados da própria empresa. Além disso, nem toda a população tem smartphones em uso.
No caso do iPhone, a restrição é a mesma do iOS 13, o que significa que os modelos a seguir não terão compatibilidade por não estarem sendo mais atualizados com a versão nova do sistema operacional:
- iPhone 6;
- iPhone 5S;
- iPhone 5C;
- iPhone 5;
- iPhone 4S;
- iPhone 4;
- iPhone 3GS;
- iPhone 3G;
- iPhone original (de 2007)
Por todas essas lacunas, o alcance do rastreamento será limitado e deve ser bem amplo, mas certamente não abrangera 100% da população.
5) Alguns países tentam suas alternativas
Em Singapura, o governo local lançou no dia 20 de março o aplicativo TraceTogether. O app troca chaves anônimas entre celulares, que armazenam, por 21 dias, os dados da proximidade entre si e da duração do contato. Se um usuário for diagnosticado com covid-19 e avisar no aplicativo, o sistema notifica os smartphones que armazenaram chaves.
No início o país asiático teve sucesso contra a epidemia, mas o número de casos subiu em abril. O motivo: dormitórios de trabalhadores migrantes, que não têm acesso ao sistema de saúde local, viraram focos da doença. Eles chegaram a corresponder a mais de 78% dos casos em Singapura.
O aplicativo conta com 1,4 milhão de downloads desde o lançamento, número que corresponde a mais de um quinto da população de Singapura (5,6 milhões de habitantes). O contágio no país contabilizava mais de 20 mil casos e um total de 20 mortes por conta da doença até a sexta-feira (8).
Outros países contam com iniciativas tecnológicas de "contact tracing" distintas, mas há um movimento de governos europeus para a adoção do sistema de Apple e Google. Um deles é o Reino Unido, que, segundo o jornal The Guardian, estaria deixando de lado sua ideia de aplicativo próprio, criticado pela questão de proteção de dados.
Apesar da popularidade, Steibel acredita que esta experiência não terá vida longa. "Nos próximos dias vamos ver mais e mais países desistindo porque não funciona", projeta. Para ele, o problema estará na qualidade dos dados fornecidos pelo sistema, vulnerável, por exemplo, a testes com resultados que demoram para sair e falsos positivos.
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