Produção científica de mulheres despenca na pandemia --de homens, bem menos
Sem tempo, irmão
- Pandemia afeta diretamente a produção científica de mulheres
- Mais da metade das mulheres com filho deixou de entregar artigos
- Mesmo isolados, só 38% dos homens com filhos deixou de publicar
- Dados servirão para cobrar ações que garantam igualdade na academia
- Número de artigos publicados é condição essencial para progressão de carreira
A tentativa de entrevista é rapidamente interrompida pelo choro da criança. "Posso te mandar áudio?", ela pede. As respostas que chegam ilustram bem o cenário: no meio do relato, dá para ouvir "mamãe, quero comer" e alguns gritos. A vida não anda fácil para a professora Juliana Fedoce Lopes, 39. Como tantas outras mulheres, ela tenta conciliar as aulas remotas do curso de química da Universidade Federal de Itajubá (Unifei) com a pesquisa pela qual ela é bolsista do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e a atenção a Felipe, o filho único de 4 anos.
"A universidade não suspendeu o calendário por conta da pandemia. Eu e meu marido, também professor pesquisador, estamos dando aula remotamente, embora as atividades de pesquisa e orientação da pós tenham ficado negligenciadas", conta.
Ela não está sozinha nessa. A pandemia de coronavírus no Brasil tem afetado fortemente a produção científica de quem depende de estrutura e recursos públicos para pesquisar, mas, no caso das mulheres, o impacto foi brutal. Se já era desigual antes, só piorou com o combo home office, aula à distância, escolas fechadas e isolamento social.
Muitas mulheres precisam dar conta não só do trabalho, dos filhos, das refeições, da limpeza da casa, da educação das crianças e das angústias provocadas pela falta de apoio, respiro ou espaço, como também, não raro, de idosos ou doentes. Sabendo disso, Fedoce se sente privilegiada.
"Ele é um pai presente que divide as tarefas de casa comigo. Tenho a noção de que a minha realidade não é a da maioria das mulheres da academia, sobretudo aquelas que exercem maternidade solo ou que têm companheiros que, fazendo ou não parte do meio acadêmico, nem sempre enxergam as outras divisões de tarefas, em casa, como sendo igualitárias."
Ela conta que já ouviu de colegas homens que só conseguiu a bolsa do CNPq por ser da "cota mulheres e mães". "Mas a verdade é que, com filho pequeno, só consegui manter um ritmo de produção acadêmica graças a colaborações científicas feitas em parceira com meu marido [que também é químico] e por ter um ambiente igualitário em casa."
Mais da metade das mães deixou de produzir artigos
Levantamento do projeto brasileiro Parent in Science [do inglês, pais na ciência] tenta calcular o dano da pandemia e da desigualdade de condições para docentes, pesquisadores e alunos de pós-doutorado, doutorado e mestrado. Até o momento, 2.000 acadêmicos já responderam o questionário —70%, mulheres. Os resultados são preliminares, mas já revelam um cenário alarmante.
Perguntados sobre ter um artigo científico quase pronto ou em vias de publicação, os entrevistados analisaram o impacto do isolamento social na conclusão do trabalho:
- 40% das mulheres sem filhos não concluíram seus artigos, contra 20% dos homens.
- 52% das mulheres com filhos não concluíram seus artigos, contra 38% de homens.
O número de artigos publicados por uma pesquisadora é condição essencial para aprovação dela em editais de projetos de pesquisa, concursos públicos e progressão de carreira.
Quem encabeça a iniciativa é a bióloga Fernanda Staniscuaski, 39, docente com pós-doutorado do Instituto de Biociências da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), casada com um cientista e mãe de três filhos —de um, quatro e sete anos.
Em 2017, ela criou o grupo para discutir a maternidade e paternidade no universo da ciência do Brasil, quando percebeu como era difícil conciliar dois filhos pequenos, na época, com o que chama de "rotina louca de pesquisa". "Foi um impacto muito grande na minha produção. Comecei a conversar com outras pessoas, que estavam na mesma situação, e resolvemos fazer algo."
Ela lembra que nada disso é novidade: estatísticas do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que as mulheres gastam quase o dobro de tempo em afazeres domésticos que os homens, mesmo quando ocupam cargos similares aos dos homens. "As pessoas têm a ilusão de que na academia essa situação apontada pelo IBGE é diferente. Não é", diz. "Com crianças em casa, muitas alunas simplesmente não conseguiram cumprir os prazos e acabaram prorrogando."
Os dados serão publicados e usados para obter condições de igualdade. A primeira coisa, diante da pandemia, será exigir que os prazos de submissão de relatórios de financiamento, pedidos de financiamento ou bolsas de pesquisa sejam estendidos.
"Caso contrário, quem vai conseguir fazer esses pedidos são os homens, nunca as pesquisadoras com filho, o que só vai acentuar essa desigualdade séria que já temos na academia", afirma Staniscuaski.
Licença-maternidade e pandemia descrita no Lattes
Outra ação, que surgiu após simpósio sobre maternidade com entidades ligadas à ciência no Brasil e deve ser reforçada agora, é brigar para que as informações sobre licenças-maternidade e/ou paternidade apareçam na plataforma Lattes, que mostra o currículo dos pesquisadores e professores atuando no Brasil.
Vácuos de pesquisa e produção podem atrapalhar a carreira de pesquisadores. Outro questionário feito pelo grupo entre 2017 e 2019, com quase 3.000 cientistas de todo o país, revelou que uma licença-maternidade pode impactar na publicação de artigos científicos por três a quatro anos após o período.
Em março de 2019, uma carta assinada por 34 entidades de ciência foi levada ao CNPq, que cuida do banco de dados. "Eles até se comprometeram a colocar isso na plataforma, mas a promessa completou um ano sem que nada fosse de fato implementado", diz Staniscuaski.
Perda de protagonismo
"Sem contar que, no cenário da pandemia, a pesquisadora que está em casa e precisa produzir quando os filhos também precisam do equipamento para fazer as aulas à distância, e nem sempre há disposição deles ou rede suficiente para a família", diz a física Marcia Cristina Bernardes Barbosa, 60, professora na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), membro titular da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Mundial de Ciências (TWAS).
Tudo isso, na opinião dela, deve ser explicitado no currículo. "Precisamos ter mecanismos compensatórios para essas mulheres, seja estendendo bolsas ou avaliando profissionais com a inclusão desse vetor adicional. Isso precisa ser incluído no Lattes."
Barbosa foi incluída pela ONU-Mulheres em uma lista de sete cientistas que moldaram o mundo graças a pesquisas em estruturas complexas da molécula de água. Ela, que não tem filhos e diz que só vê sua produção afetada quando viaja muito, entende que este seria um momento de ouro para que as mulheres turbinassem a carreira, também como comunicadoras científicas.
É o momento em que a ciência está aparecendo muito, mas quantas não estão em casa tentando sobreviver, em vez de estarem falando de suas pesquisas? É perverso, porque, tendo menos visibilidade, elas ficam mais sujeitas a não terem projeção do profissional. A pandemia está sendo um momento particularmente crítico à mãe pesquisadora: é como se ela estivesse sendo penalizada por sua condição
Marcia Cristina Bernardes Barbosa
Dados brasileiros e norte-americanos provam isso. Tanto a revista de ciências sociais "Dados", da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), quanto o "American Journal of Political Science" e quanto dois editores de periódicos científicos fizeram relatos ou publicaram levantamentos que mostram que, durante a pandemia, as mulheres estão escrevendo mais artigos científicos em coautoria —e menos como primeiras autoras ou sozinhas, ao contrário dos homens.
"A média de manuscritos com as primeiras autoras mulheres entre 2016 e 2020 foi de 37%, mas esse patamar caiu substantivamente para 13% neste trimestre. Além de o menor percentual histórico do período analisado, trata-se de menos da metade da média para os anos considerados", afirma a publicação da Uerj.
No começo do ano, 40% dos artigos submetidos tinham mulheres na autoria, agora este percentual caiu para 28%.
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