Manifestantes usam a tecnologia para enfrentar abuso policial nos EUA
Sem tempo, irmão
- Protestos por George Floyd inflaram downloads de app de escaneamento de rádio da polícia
- Apps de mensagens alternativos como o Citizen e uso do Twitter também municiam ativistas
- Na outra ponta, câmeras e reconhecimento facial são armas digitais para monitorar multidões
Um aplicativo capaz de "escanear" transmissões de rádio da polícia tem batido gigantes da tecnologia em número de downloads nos EUA. De um lado, usuários procuram apps de mensagens protegidas, e do outro, a força policial se apoia no aparato de câmeras.
A corrida por ferramentas eletrônicas que não fariam tanto buzz em condições normais de pressão e temperatura mostra como a tecnologia tem sido usada desde o início dos protestos anti-racismo pela morte de George Floyd, que chegaram até a Casa Branca e emparedaram a gestão Donald Trump.
O 5-0 Radio Pro Police Scanner se tornou, no auge das manifestações, o segundo aplicativo gratuito (e o primeiro entre os pagos) mais baixado na App Store americana, à frente do Facebook, Instagram e TikTok. Com as informações captadas, os manifestantes conseguem se antecipar a ações policiais para reprimir os atos.
Segundo o criador do aplicativo, Allen Wong, mais de 500 mil usuários estavam ativos em seu app em um dia, segundo uma reportagem da Vice. Na segunda-feira (1º), uma plataforma similar, chamada Police Scanner Radio & Fire, se tornou o quarto aplicativo gratuito mais popular na App Store nos EUA. Outro, chamado Broadcastify Pro, ficou em 12º lugar.
Segundo a plataforma Apptopia, o número de downloads dos cinco principais aplicativos de scanner da polícia aumentaram 125% em um só fim de semana em comparação com o anterior.
Até então, o pico de popularidade desses apps havia acontecido após o atentado da Maratona de Boston, em 2013. Muitos dos usuários queriam acompanhar a caçada até os autores do ato que matou três pessoas e feriu outras 264.
Em seu perfil no Instagram, o desenvolvedor do 5-0 Radio escreveu que seu objetivo sempre foi "criar uma tecnologia que ajudasse as pessoas a mudar o mundo para melhor". Ele prometeu doar os recursos do app para grupos como a Equal Justice Initiative, uma ONG que fornece representação a prisioneiros injustamente condenados.
Como funciona o app
O procedimento é simples, segundo especialistas ouvidos por Tilt. Com um scanner de rádio —um programa que pode ser baixado gratuitamente— é possível interceptar no computador a comunicação digital policial que não é criptografada.
Apps como o 5-0 Radio Pro Police Scanner têm voluntários em alguns pontos nodais que fazem, ou deixam o computador fazer, esse escaneamento. Os apps para celular têm acesso a esses computadores, que se tornam uma espécie de servidores da informação.
Não é bem uma radioescuta, segundo o desenvolvedor de software Pedro Moraes. "Mesmo celulares que pegam estações de rádio estão limitados às frequências FM. O que eles fazem é funcionar como players de streaming, e devem ter um catálogo específico desses streams [de canais da polícia]", explica.
"Radioamador pegar isso não é de hoje, inclusive frequência de avião. E o crime organizado usar o recurso também é coisa antiga e representada em muitos filmes", diz.
No Brasil, o programador diz não ter encontrado nenhum stream de frequência de polícia nos sites públicos, apenas "uns poucos de bombeiros". "As polícias grandes e equipadas não circulariam, hoje, informação em canais tão vulneráveis. Já usam rádio digital com criptografia, que inviabiliza qualquer interceptação. A PM de São Paulo já tem isso há mais de dez anos."
Uma possível explicação para o fenômeno nos EUA é que algumas polícias de lá são descentralizadas. "Certamente você não sintonizará facilmente uma (comunicação) federal, como o FBI, para saber das novidades."
Quem vigia os vigilantes?
Segundo o especialista em vigilância Alcides Peron, os aplicativos de acesso à comunicação da polícia são ainda pouco conhecidos e se limitavam, até pouco tempo, a alimentar o "voyeurismo" dos usuários após eventos como os atentados à maratona de Boston.
Lá atrás, a polícia entendeu que esse tipo de aplicativo era uma forma de munir os cidadãos que pudessem contribuir com buscas e apreensão. Agora ele ganha uma ressignificação diante do aumento da brutalidade policial
Alcides Peron
O especialista lembra também que boa parte das forças policiais nos EUA fizeram alterações em sua radiofrequência, que se tornaram digitais em meados dos anos 2000. No Brasil, essa digitalização se deu cerca de dez anos depois.
Isso, de fato, dificultou a vida dos radioamadores, mas os precedentes para os mecanismos de escaneamento de rádio por computador.
No fim das contas, afirma Peron, essa nova dinâmica muda também as características das manifestações, que se tornam mais inteligentes, com mais capacidade de organização, produzindo provas e constrangendo prováveis escalonamentos da violência.
Desde os protestos de junho de 2013, no Brasil, o uso de redes sociais passou a ser comum para essa prática. Também existe uma série de aplicativos, sobretudo no Rio, que monitoram zonas de conflito e tiroteios.
Peron afirma que não há ilegalidade em ouvir o rádio da polícia desde que as mensagens não sejam criptografadas — quando a comunicação é sigilosa, o acesso pode configurar hackeamento. Mas, mesmo legal, não significa que não possa haver conduções policiais para "explicações" sobre os motivos do monitoramento da frequência. "Isso pode vir a acontecer, mesmo que, ao fim, não haja processo. Logo, é necessário uma reflexão mais adequada junto a juristas."
Velha repressão, novas ferramentas
Os sistemas de vigilância e monitoramento se tornaram uma faca de dois gumes, conforme descreveu o Washington Post, em um país coalhado de câmeras por todo lado.
Enquanto as forças de segurança contam com redes de câmeras de vigilância e corporal, além do suporte de sistemas de monitoramento privado e programas de reconhecimento facial, manifestantes e jornalistas gravam vídeos em smartphones e câmeras GoPro para flagrar abusos e mostrar o que acontece em tempo real nas redes sociais. Vale lembrar que a filmagem de um desses abusos detonou a onda de revolta.
Atualmente, o trabalho de identificação de imagens da polícia é facilitado até mesmo pelas câmeras da Tesla e de outros veículos, que podem fornecer registros da movimentação em determinadas localidades.
Isso tem levado os manifestantes a se precaverem. Desde o ano passado, atos de Hong Kong ao Chile foram marcados pelo uso de canetas laser para evitar o reconhecimento facial por drones e câmeras de segurança, fazendo com que as mobilizações se assemelhassem a guerras de sabre de luz dos filmes distópicos.
Em outubro, esse panorama levou militantes a criarem uma maquiagem anti-vigilância em massa. É o caso do coletivo Dazzle Club, de Londres.
O tráfego de comunicação entre manifestantes também mudou. Muitos usuários migraram para o Signal, um app de mensagens considerado mais seguro que o WhatsApp, enquanto outros baixaram o Citizen, uma plataforma de alertas policiais relançado em 2017 e que originalmente se chamava "Vigilante".
A Apptopia identificou também que tem mais gente entrando no Twitter do que no Facebook e no Instagram — o que, segundo o WP, não é comum.
Foi pelo Twitter que o departamento de polícia de Dallas pediu, no fim de maio, que quem observasse alguma "atividade ilegal" nos protestos enviasse as "provas" para seu aplicativo de denúncias anônimas, o iWatch Dallas. Resultado: o app foi invadido por vídeos e imagens de estrelas do k-pop e saiu do ar.
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