Satélite da China envia mensagem por comunicação quântica; o que é isso?
Sem tempo, irmão
- Satélite chinês Micius se comunicou com duas estações na Terra por meio de raios laser
- Separados por 1.120 km, pares de fótons estabeleceram conexão mais segura do mundo
- Chave de criptografia de 372 bits levou duas semanas para ser transmitida
- Rede global de internet quântica pode ser desenvolvida nos próximos anos
Pesquisadores chineses desenvolveram um sistema de comunicação impossível de ser espionado ou hackeado. Usando o satélite quântico Micius, eles estabeleceram a conexão mais segura do mundo e demonstraram que a tecnologia é viável a longas distâncias.
O satélite enviou, simultaneamente, uma chave criptográfica para duas estações na China, separadas por 1.120 quilômetros. Esse é o novo recorde da comunicação quântica, que já havia sido comprovada, mas nunca se havia atingido uma distância ou uma eficiência tão grandes.
O estudo foi publicado na revista Nature por uma equipe de 24 cientistas liderados por Jian-Wei Pan, físico da Universidade de Ciência e Tecnologia da China, em Hefei. O país agora é o líder da corrida para se criar uma rede global de internet quântica, totalmente segura.
"O experimento deixou claro que a tecnologia funciona e será implantada em um futuro próximo", diz Marcelo Martinelli, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP).
O que é comunicação quântica?
A física clássica, aquela que aprendemos na escola, explica bem o mundo quando falando de corpos relativamente grandes. Porém, não é capaz de reger o comportamento de partículas microscópicas. A física quântica surgiu para desvendar a interação de moléculas, átomos e partículas subatômicas, como elétrons e fótons.
Uma das principais propriedades quânticas é o chamado emaranhamento, ou entrelaçamento. Duas partículas podem estar entrelaçadas de tal maneira que uma partilha o destino da outra, mesmo que estejam separadas por enormes distâncias.
Dá para saber características de uma partícula só observando a outra a qual ela está entrelaçada. É tão impressionante que Albert Einstein chamou essa caraterística de "ação fantasmagórica à distância".
Comunicação quântica quer dizer enviar uma mensagem usando o entrelaçamento de pares de fótons (partículas de luz). E não é novidade. Desde a década de 1990, China, Estados Unidos e países europeus realizam experimentos para desenvolver uma rede quântica, 100% segura, para enviar mensagens estratégicas.
Mas o grande empecilho da tecnologia sempre foi a distância. A transmissão de fótons por fibra ótica, por exemplo, tem muita perda, sendo eficaz apenas até cerca de 100 km. Por isso, o uso de um satélite especial é fundamental.
Como foi o experimento chinês?
O Micius (também chamado de Mozi na China), lançado pela China em 2016, é o primeiro satélite quântico do mundo. Ele orbita a Terra a 500 km de altitude. Enquanto um satélite comum utiliza ondas de rádio para nos enviar mensagens, o Micius usa raios laser e cristais, que emitem os fótons emaranhados.
No experimento, o satélite enviou uma chave secreta de criptografia, escrita com pares de fótons entrelaçados, para duas estações nas cidades Delingha e Nanshan. Um telescópio especial em cada uma delas recebeu um feixe de laser com metade dos pares.
Foi transmitida uma chave quântica de 372 bits, que pode ser usada para codificar qualquer mensagem enviada entre as estações por outro meio, como rádio, telefonia ou internet. Cada bit de informação é codificado usando um par de fótons entrelaçados - ou seja, apenas alguém com a outra partícula pode acessá-la.
São gerados milhares de bits por segundo. Mas a grande maioria dos pares de fótons não chegam ao destino por diversos motivos.
"Por exemplo, o feixe do laser vai aumentando de diâmetro até chegar na Terra e há interferência de nuvens, poeira e outras fontes de luz. Cerca de um par de fóton a cada mil é utilizado. Isso é perfeitamente seguro. Os outros fótons são simplesmente descartados, mas é preciso gerar muitos para conseguir competir com o processo", ressalta Martinelli.
Demorou duas semanas para que a chave fosse totalmente transmitida, a uma taxa de 0,12 bits por segundo. O professor explica: "O Micius funciona em uma órbita que chamamos de 'solar'. Ou seja, ele passa sobre determinado lugar apenas uma vez ao dia, na mesma hora. E tem cerca de cinco minutos de ótima visibilidade de cada ponto".
Por 285 segundos todos os dias, o satélite estava em contato com cada uma das estações. Ou seja, a cada passagem, cerca de 34 bits eram eficazmente transmitidos. Parece pouco, mas é mais eficaz que a transmissão por fibra ótica, totalmente segura e aplicável —principalmente para usos governamentais e militares.
Por que é tão segura?
A mera observação da comunicação quântica por uma terceira parte corrompe a informação. Medir as propriedades de um fóton afeta o sistema imediatamente, mesmo que seu par esteja a milhares de quilômetros de distância. Se alguém tenta acessar as partículas enviadas, o entrelaçamento é rompido, e deixa uma marca na transmissão.
As possibilidades do estado quântico são diferentes das correlações clássicas a que estamos acostumados. Martinelli faz a analogia com uma caixa de sapatos fechada. Se você a abre e só há um pé direito marrom, sabe que há outro pé esquerdo marrom que não chegou até você. Então é algo fácil de decifrar. Isso seria a comunicação comum.
Já a comunicação quântica gera duas possibilidades de medida incompatíveis: podemos perguntar se o sapato é o direito ou esquerdo, ou perguntar se ele é marrom ou preto, mas não podemos fazer as duas perguntas ao mesmo tempo. E não podemos abrir a caixa, pois este simples fato já alteraria o estado das coisas.
"Isso fica claro com o fóton. Suas propriedades aleatórias podem ser associadas a bits (0 ou 1), que vão formar a chave criptográfica. Mas, se alguém medi-lo, ele não vai chegar; se alguém tentar copiá-lo, vai realizar uma medição na base errada. E, pelas leis da física, somente com as duas partes é possível ter acesso à mensagem. Manter o emaranhamento é a chave da comunicação quântica", explica Martinelli.
O satélite Micius é que produz o emaranhamento em seus feixes laser. Já na comunicação entre as estações em terra, dois princípios quânticos agem para blindar a segurança: o da incerteza de Heisenberg, que não deixa medir mais de uma variável do fóton ao mesmo tempo (como, no exemplo acima, o sapato ser preto ou marrom, direito ou esquerdo), e o teorema da não-clonagem, que impede que um estado quântico desconhecido seja replicado. Resumindo, não dá para copiar e nem medir um fóton sem perder o emaranhamento.
"Não tem como fazer um grampo na comunicação quântica. Não é possível nem amplificar o sinal, pegar um fóton e transformar em vários para que cheguem mais longe. Os fótons estão bagunçados individualmente, mas perfeitamente emaranhados globalmente. Qualquer interação perturba este delicado equilíbrio", diz o professor.
Algo assim tão seguro é impossível com tecnologias não-quânticas. O que temos de mais avançado hoje é o protocolo RSA de criptografia geral. E ele poderá ser quebrado justamente com um computador quântico. Já uma chave quântica não consegue ser violada nem por eles.
"Na presença de um espião, a correlação entre os fótons é perdida, então uma tentativa de invasão sempre é detectada. A troca de chaves quânticas baseadas em emaranhamento foi provada como totalmente segura, o que não acontece com a troca de chaves clássicas", acredita Sebastião Pádua, professor do Departamento de Física da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
E é por isso que os governos têm tanto interesse no assunto. A Nasa está desenvolvendo o projeto "National Space Quantum Laboratory" (Laboratório Quântico Espacial Nacional), que pretende usar um sistema de lasers na Estação Espacial Internacional (ISS), para transmitir mensagens quânticas. E, desde 2018, a Europa já tem o OPENQKD, seu próprio projeto de comunicação quântica, em fase de testes.
"Isso é uma revolução e um passo importante na formação de redes quânticas globais e seguras. A importância do resultado chinês é que os países verão que é possível. Acho que a tendência é que Estados Unidos e Europa terão os seus próprios satélites para comunicação quântica", acredita Pádua.
Ele ressalta que o Brasil também poderia entrar na corrida. "Temos tecnologia para fazer satélites, deveríamos fazer um esforço com outros países da América do Sul. O projeto chinês tem mais de dez anos. Pesquisa se faz com financiamento contínuo das agências de fomento e isso se está faltando no Brasil", conclui o professor.
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