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É greve: entregadores param hoje e fazem desafio à economia dos aplicativos

Gabriel Francisco Ribeiro

De Tilt, em São Paulo

01/07/2020 04h00

Sem tempo, irmão

  • Entregadores de aplicativos fazem paralisação nacional nesta quarta-feira
  • Ideia é parar serviços de entrega e delivery no país contra a precarização do trabalho
  • Entre exigências estão reajuste no valor, fim de bloqueios e entregas de EPI
  • Manifestação na chamada "economia de bico" esbarra no poder de adesão
  • Aplicativos dizem apoiar liberdade de expressão e respondem às exigências

"A gente quer que a população saiba o quanto custa uma entrega mais barata ou gratuita". A frase dita a Tilt pelo entregador Edgar Silva, mais conhecido como "Gringo", resume o sentimento de uma categoria nesta quarta (1º). Parte dos entregadores fará hoje uma paralisação nacional com exigências a apps como iFood, Rappi, Uber Eats e Loggi, em um novo desafio à chamada "economia de bico" no Brasil.

A previsão é que a manifestação ocorra em vários estados do Brasil —inclusive com atos físicos em alguns— e que chegue até a outros países. Além da paralisação, entregadores pedem para que usuários de serviços de delivery não peçam nada ao longo da quarta-feira, em apoio ao movimento.

Essa será uma nova tentativa de os prestadores de serviços a apps chamarem atenção para problemas na relação entre empregador e empregado —que os apps chamam de "parceiros". Anteriormente, motoristas de aplicativos como Uber e 99 já fizeram tentativas de greve, mas o alcance foi limitado.

O movimento começou a ser desenhado nos últimos meses com alguns pequenos protestos e, segundo entregadores, surgiu de forma orgânica em grupos de WhatsApp devido à revolta contra as plataformas. A principal reclamação deles é sobre a precariedade do trabalho, que muitas vezes envolve trabalhar muito e ganhar pouco.

Só queremos ganhar melhor para almoçar dignamente, trocar peça da moto e não andar precarizado. O novo normal não precisa ser só a mascara e álcool gel, é a forma nova de trabalhar. Só queremos ser remunerados
Gringo, presidente da Amabr (Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil)

A paralisação ocorre em meio a uma votação na Câmara de São Paulo que pode exigir placa vermelha para entregadores que queiram trabalhar nos aplicativos. Associações como a Amabr dizem que a nova lei dará mais segurança aos entregadores, enquanto críticos apontam que vai burocratizar o setor e excluir entregadores. A votação está na pauta da sessão desta semana, após dois adiamentos.

As exigências

Os entregadores fazem uma série de exigências aos aplicativos que, segundo eles, não oferecem diálogo. Entre as exigências, estão:

  • Reajuste de preços: os entregadores recebem entre R$ 4,50 e R$ 7,50, valor que varia por aplicativo e distância percorrida --mais R$ 0,50 a R$ 1 por quilômetro rodado.
  • Reajuste anual: pedem que haja um reajuste anual programado para o serviço.
  • Tabela de preços: citado por alguns entregadores, seria uma tabela não ditada pelo governo ou reguladores, mas construída entre entregadores e aplicativos.
  • Fim de bloqueios indevidos: reclamação constante dos entregadores, que questionam as políticas das empresas que acabam punindo entregadores com bloqueios.
  • Entrega de EPIs: pedem equipamentos de proteção para trabalhar com mais segurança durante a pandemia.
  • Apoio contra acidentes: se o entregador sofrer acidentes enquanto usa a plataforma, a ideia é ter algum tipo de auxílio.
  • Programa de pontos: alguns entregadores questionam sistemas que fazem ranking de entregadores. Gringo cita o da Rappi que, segundo ele, exigiria que a pessoa trabalhasse "de domingo a domingo para pegar os melhores pedidos"

As exigências são muito semelhantes à da paralisação de motoristas de aplicativos como Uber e não englobam direitos trabalhistas. Existem opiniões divergentes entre os entregadores sobre a contratação e os direitos, sendo que alguns preferem ter e outros não. Por isso, está fora da pauta.

Tamanho da greve é desafio

A expectativa é que o "breque dos apps", como a greve tem sido chamada na internet, cause uma parada no sistema de delivery. Mas, por ser um movimento descentralizado, o tamanho do ato é imprevisível e um desafio que motoristas de apps como Uber já sentiram na prática.

Para Juliana Inhasz, professora de economia do Insper, as greves nesses serviços só funcionam se a sociedade abraçar os movimentos. Isso porque os aplicativos confiam sempre na lógica do "se você não quer trabalhar, tem quem queira" e muitos que estão no serviço não pararão por dependerem da renda do dia.

"Não adianta quem presta o serviço parar se as pessoas que pedem comida continuarem pedindo. As pessoas que estão paradas vão ser incentivadas a voltar ao sistema. Se a sociedade se preocupa com a precarização, deveria ser solidária e aderir ao movimento", diz.

A greve não tem uma liderança organizando os atos, e os "motocas", como gostam de ser chamados, dizem sequer saber a origem da revolta.

"Foi passado por WhatsApp, Facebook, nos grupos. Fomos entrando, nem sei quem puxou o bonde. A ideia é cada um se organizar nos Estados", diz Alessandro da Conceição, conhecido como "Sorriso", um dos organizadores do protesto em Brasília e que tenta tirar do papel a AmaeDF (Associação dos Motofretistas Autônomos e Entregadores do Distrito Federal).

O caráter "sem líderes, sem partidos e sem sindicatos" virou um mantra para atrair mais entregadores à ação. O recado é: o ato não é fruto de uma associação ou entidade. Isso pode ajudar ou atrapalhar, segundo especialistas. "Pode ser positivo por ser orgânico, pode ser negativo porque nesse momento estão na luta pela sobrevivência", aponta Fábio Mariano, professor na ESPM e pesquisador em Sociologia do Consumo.

Mesmo sem lideranças, o movimento tem ganhado endosso até de figuras importantes da política nacional, como o ex-candidato à Presidência Ciro Gomes (PDT) e deputados como Marcelo Freixo (Psol). Mas os entregadores rechaçam qualquer envolvimento político na greve desta quarta.

A intenção é que os entregadores desliguem os aplicativos, mas em algumas cidades estão previstas manifestações físicas: em Brasília (DF) o movimento deve partir às 9h do estacionamento do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e seguir por alguns pontos, como a Esplanada dos Ministérios.

Já em São Paulo, manifestos nas redes sociais citam encontros por "quebradas". Panfletos ainda fazem chamamentos em "bolsões", onde entregadores se juntam para aguardar pedidos, e bloqueios em shoppings, mercados e restaurantes. Está previsto ainda um percurso que partirá da ponte Estaiada e chegará às 14h no Masp, na avenida Paulista.

Há a expectativa da "exportação" da greve para outros países. Segundo entregadores, movimentos em outros países da América Latina devem se juntar à paralisação. Sorriso aponta que trabalhadores de Argentina, Chile, Costa Rica. México, Equador, entre outros, devem aderir ao movimento.

Pandemia: valorização, mas menos poder de negociação

A pandemia causada pelo coronavírus gerou uma valorização do trabalho dos entregadores, que passaram a ser considerados "atividade essencial" e foram vitais para o isolamento social, ligando as pessoas em quarentena em suas casas a itens como comida e produtos em geral.

Ao mesmo tempo, a pandemia também diminuiu o poder de negociação deles, como analisa Inhasz. O aumento do desemprego, com um milhão de empregos formais cortados só neste ano, abastece cada vez mais a "economia de bico" e deixa os aplicativos com um poder de barganha maior, já que contam com maior força de trabalho.

"Se você estivesse em um momento com pouca mão de obra e muita gente querendo o produto, trataria seu funcionário muito bem. No momento atual, com taxa de desemprego que só cresce e fechamento de vagas formais, os aplicativos podem abusar mais", aponta a professora do Insper.

O número de entregadores em aplicativos no Brasil atualmente não é informado, mas estima-se que esteja na casa de centenas de milhares —só na cidade de São Paulo são 50 mil, de acordo com os próprios apps. Durante a pandemia, houve um aumento tanto no uso dos aplicativos quanto de entregadores nas plataformas.

No período, um levantamento apontou que os entregadores estão trabalhando mais e ganhando menos. A noção de que os ganhos foram reduzidos ao longo do tempo nos apps é corroborada por Gringo, que trabalha como entregador há 22 anos.

"A CLT, que era engessada, não deixava ganhar mais. Quando entrou o app ganhávamos três a quatro vezes mais do que com a CLT, aí foi só abaixando e abaixando. Foi aí que percebemos que o aplicativo estava abusando e fazendo uma ditadura", aponta.

Segundo Mariano, os entregadores estão no limite da vulnerabilidade. "Tecnicamente uma greve é muito bem-sucedida quando aquelas pessoas não são facilmente substituídas, como motoristas de ônibus, professores, bancários, policiais. Agora entregador hoje em dia muitos só precisam de bicicleta", ressalta.

Por outro lado, o professor da ESPM aponta que o sucesso do movimento pode estar na capacidade dos entregadores sensibilizarem a população e, por tabela, mexerem com as empresas. "O positivo de acontecer no momento da pandemia é que vai sensibilizar a todos, diferente de greves de outras classes", cita.

O impacto das reivindicações

Para os especialistas, as exigências são justas, mas são complexas e criam um paradoxo: ao mesmo tempo em que os entregadores se dispõem a trabalhar como autônomos, exigem alguns direitos das empresas.

"Existe a necessidade de compreender o que é o setor informal da economia de ambos os lados. O trabalhador precisa entender o que é a economia de bico e ceder em alguns aspectos, mas a empresa também tem que ceder", aponta Inhasz.

A solução, para ela, só virá com uma retomada econômica forte que deixe quem estiver com os direitos de um lado e quem queira ser autônomo de outro, ambos por opção e podendo trocar de setor quando quiser. Isso daria mais poder de barganha para os entregadores e menos força aos aplicativos.

Mariano vê os entregadores como os "trabalhadores da mineração de carvão no século passado" e opina que a tendência futura é, infelizmente para a classe, a substituição deles por tecnologias como drones e carros autônomos.

"Os países não prepararam as pessoas para chegar ao século 21. O mundo vai avançando e nos perguntamos o que fazer com os excluídos. Podem ter alguns ganhos com essa manifestação para reduzir a precarização do trabalho, mas não se converte em direitos", cita.

A greve ainda ganhou o apoio do sindicato patronal (Sedersp) e operário (Sindimoto) de entregadores que trabalham com CLT em São Paulo, mas eles não falam sobre as relações entre entregadores e aplicativos. Em nota, a Sedersp diz que os apps "ultrapassaram os limites aceitáveis, uma vez que grande parte das reivindicações são direitos já conquistados pela classe trabalhadora dos motofretistas".

Apps citam "liberdade de expressão"

Tilt procurou os aplicativos iFood, Rappi, Uber Eats e Loggi para saber se tinham algum posicionamento sobre o movimento dos entregadores.

O iFood disse apoiar a liberdade de expressão e que não desativará entregadores por participarem de movimentos. Além disso, a empresa rebateu alguns dos questionamentos dos grevistas:

  • Bloqueios de entregadores: a empresa diz que ocorrem quando "a empresa recebe denúncias e tem evidências do descumprimento de regras, que pode incluir, por exemplo, extravio de pedidos, fraudes de pagamento ou, ainda, cessão da conta para terceiros". Todos os casos passam por análise junto ao entregador e, se houver erro, a conta é reativada, segundo o app.
  • Recusa de pedidos: a empresa diz também não adotar como punição: "ao rejeitar muitos pedidos, o sistema entende que o entregador não está disponível naquele momento e pausa o aplicativo, voltando a enviar pedidos, em média, 15 minutos depois", alega.
  • Ranking de pontuação: o aplicativo diz não ter esse ranking e que o algoritmo leva em conta fatores como a disponibilidade e localização do entregador, além da distância do restaurante para o consumidor.
  • Pagamento: o valor médio pago por rota, de acordo com o iFood, é de R$ 8,46, com o valor mínimo de R$ 5 para distâncias curtas --o valor é informado antes para aceitarem ou recusarem a entrega. A empresa aponta que o valor médio por hora dos entregadores em maio foi de R$ 21,80, que seria mais de quatro vezes o correspondente no salário mínimo no país. O iFood ainda alega que o grupo de entregadores que tem as entregas como fonte principal de renda (37% do total) teve 70% mais ganhos em maio em comparação a fevereiro.
  • Seguro: o iFood ainda diz que oferece aos entregadores seguros de acidente pessoal desde 2019, sem custo aos parceiros e englobando despesas médicas e odontológicas. O benefício é válido no período em que estão logados no app e no "retorno para casa" --uma hora ou a 30 km do local da última entrega.
  • EPIs: a empresa ainda diz realizar desde abril a entrega de equipamentos aos entregadores, além de contar com fundos financeiros para quem apresentar sintomas de covid.

Já a Rappi também afirmou reconhecer o direito à livre manifestação pacífica e diz buscar sempre o diálogo com os entregadores, além de ressaltar que ninguém será bloqueado por participar do ato. Sobre as reivindicações, o app diz:

  • Seguro de vida e parcerias: a empresa diz oferecer desde o ano passado seguro de vida e parcerias para desconto na troca de óleo, além de inaugurar a Rappi Points, que são bases físicas para descanso.
  • Mapa de demanda e valores: a empresa diz ter criado um mapa de demanda para orientar entregadores sobre locais com melhores oportunidades. O frete, diz, varia de acordo com o clima, dia da semana, horário, zona da entrega, distância percorrida e complexidade do pedido. A empresa ainda aponta ter notado de fevereiro a junho um aumento de 238% no valor médio das gorjetas no app e de 50% no percentual de pedidos com gorjeta, que é passada integralmente ao entregador.
  • Programa de pontos: diz que é para que os "entregadores parceiros com um maior número de pontos possam ter preferência para receber pedidos, criando mais oportunidades para eles".
  • Protocolos de segurança: a empresa cita como medidas tomadas na pandemia a entrega sem contato, entrega de álcool em gel e máscaras para entregadores, fundo para apoiar financeiramente entregadores com covid-19 e campanhas de prevenção.

Uber Eats e Loggi não se posicionaram até o fechamento dessa reportagem e, caso o façam, o texto será atualizado.