Como uma cientista negra usa suas habilidades de hacker contra o racismo
Ana Carolina da Hora, 25, tem uma personalidade inquieta, como um personagem de desenho animado com vários balões de ideias girando em torno da cabeça. Nina, como gosta de ser chamada, vive pensando em jeitos para usar o conhecimento para hackear o racismo.
Nina é estudante universitária de ciência da computação, programadora, pesquisadora, voluntária, dá aulas e palestras e, em tempos de pandemia, participa de eventos online. O próximo será nesta sexta-feira (17), no Universa Talks. Todas suas ações miram o compartilhamento de conhecimento com jovens negros, principalmente mulheres para que eles se sintam fortalecidos para ocupar seus espaços no mercado de tecnologia.
O termo hackear ficou preso à tecnologia, mas se aplica a tudo, porque é você ressignificar um padrão. É pegar um que já existe e dar novo sentido para melhorar algo. A educação é a melhor forma de hackear todos os sistemas [quebrando padrões que estimulam a desigualdade]
Nina da Hora
Ela sempre reforça o quanto a representatividade é necessária, mas o desafio é grande: os profissionais da área de tecnologia são predominantemente homens (68,3%) e pessoas brancas (58,3%), mostra pesquisa da Olabi, organização social que estimula a diversidade na área. Segundo dados do IBGE de 2018, somente 20% dos profissionais contratados na área de TI no Brasil são mulheres.
Nina conseguiu hackear a desigualdade racial e de gênero a partir das oportunidades de estudo e trabalho que teve no setor. Agora age para ajudar outras pessoas a fazerem o mesmo. Só para este ano, tem dois projetos para isso:
- Ogunhê, podcast sobre as contribuições de cientistas africanos para o mundo: o objetivo é resgatar a história desses profissionais e dar visibilidade para a ciência feita por eles, para que pessoas negras se sintam mais representadas.
- Computação da Hora: com vídeos no YouTube, ela ensina conceitos da computação de modo simples e gratuito. A ideia é ter também materiais didáticos sobre pensamento computacional e debates sobre o problema do racismo algorítmico.
"A tecnologia é feita por humanos, que em sua maioria são brancos. Eles não têm uma vivência onde consigam enxergar determinadas ações, palavras que podem ser racistas. O racismo algorítmico envolve ferramentas e formas que a tecnologia encontra de propagar o racismo do mundo real", explica. "Queremos trazer a história da África e entender quando o racismo algorítmico começa. Tem a ver com a nossa origem e as formas que foram lidando com as tecnologias antigas."
Hackear o racismo significa romper com esse padrão, levantando o debate e exigindo a diversidade no mercado de trabalho. Além disso, ela trabalha para explicar aos jovens o enviesamento do algoritmo que reproduz preconceitos e ajudá-los a desenvolver senso crítico sobre as tecnologias que usam.
Aqui é o seu lugar
Nina nasceu no Rio de Janeiro, mas foi criada em Duque de Caxias, região metropolitana, pela mãe, avó e tias —ela até brinca que tem cinco mães, todas professoras. "Lembro com muito carinho o quanto elas me ajudaram. E não foi explicando o que era matemática, engenharia, mas acreditando no que eu queria, me apoiando", contou.
Quando tinha 15 anos, ela quando trocou a oferta da família de ter uma festa de aniversário pelo dinheiro para participar de um evento de tecnologia e entretenimento digital, chamado CG Extreme, realizado no Rio na época. "Todo mundo se juntou, deu um pouco para eu pagar a inscrição. Lembro que, quando falei com a minha mãe de trocar o presente, ela me olhou como se dissesse 'garota, quem é você?'", disse em tom de brincadeira.
Foi naquelas palestras que Nina aprendeu formas diferentes de usar a tecnologia, como na criação de filmes e jogos. "Tinha muita gente maneira. Consegui tirar foto com a produtora dos personagens dos filmes [da saga] Harry Potter, ela explicou as tecnologias que usou, mostrou que tinha usado programação", lembra.
Animada, Nina começou a trabalhar em eventos do tipo como voluntária —foram tantos que ela não sabe dizer de quantos participou. Além de ouvir histórias de profissionais brasileiros e estrangeiros nas áreas em que sonhava trabalhar, se deu conta de que conseguia entrar nesses espaços e sentir que ali também era o lugar dela.
Em 2015, ganhou uma bolsa para estudar na PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). A mãe ficou animada, mas temia as consequências da personalidade questionadora da filha, que já se impunha como uma jovem mulher negra determinada a fazer diferença dentro da tecnologia. "Ela falou: 'Nina, você só vai encontrar pessoas brancas, e a mãe sabe que você vai brigar se achar que precisa se impor. Tenha calma'."
Nina foi com calma, mas demorou mais de seis meses para sentir que pertencia ao ambiente universitário. Recebeu olhares tortos por ter vindo da periferia, pela cor da sua pele, por ser mulher. "Quando entrei na PUC, me sentia invisível. Todos tinham os seus grupos de amigos, muitos já se conheciam por terem estudado juntos em escolas de classe alta da zona sul. Ninguém falava comigo, e eu com ninguém. Minha preocupação na época era se eu ia conseguir aguentar, sabe?"
Nina nem sabia na época, mas usou o conhecimento e a tecnologia para hackear o problema. Se agarrou aos estudos, a projetos de extensão e competições de inovação. Em 2016, coordenou na PUC o projeto Pyladies, um grupo de garotas que ensinavam a linguagem Python para outras meninas, capacitando-as para o mercado da computação.
A primeira oportunidade de conhecer outro estado e de viajar de avião aconteceu graças à tecnologia. Foi em 2017, no evento de programação Campus Mobile, organizado pela USP (Universidade de São Paulo). Com o desenvolvimento de um sistema de sinalização para ajudar ciclistas, ela conquistou o quinto lugar na competição.
O bom desempenho resultou em um convite da organização do evento para participar no ano seguinte como embaixadora. Nesse tempo, Nina se dividia também com os estágios na área.
Em 2018, outra viagem. Agora, internacional. Nina foi uma das brasileiras convidadas pela Apple para participar da conferência anual de desenvolvedores, realizada anualmente nos Estados Unidos, com tudo pago.
Para ela, o ano passado foi uma correria com vários projetos e eventos. Agora em 2020, Nina decidiu deixar algumas iniciativas para se dedicar melhor a outras enquanto termina a faculdade.
Mesmo com o diploma, a jovem se reconhece como uma cientista em construção por acreditar que o conhecimento vem de diferentes formas e a todo momento. Para ela, quanto mais formas aprender para democratizar o conhecimento tecnológico e incentivar jovens negros a entrarem no mercado de TI, melhor.
"Sei que é algo difícil de resolver, mas é a longo prazo. De forma alguma eu acho que os projetos, conteúdo e tudo o que eu faço hoje são para gerar uma mudança a curto prazo. Entendo que é preciso ter paciência", concluiu.
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