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Fake news criam caixa 2.0 da corrupção eleitoral, diz autor da Ficha Limpa

Márlon Reis, um dos autores da Lei da Ficha Limpa - Sérgio Lima 6.set.2012/Folhapress
Márlon Reis, um dos autores da Lei da Ficha Limpa Imagem: Sérgio Lima 6.set.2012/Folhapress

Carlos Madeiro

Colaboração para Tilt

19/07/2020 04h00

Idealizador e um dos autores da Lei da Ficha Limpa, criada em maio de 2010, o jurista Marlon Reis acredita os tempos mudaram e que, agora, precisamos de mecanismos para buscar e punir quem financia ilegalmente as fake news.

"O desafio mudou: [precisamos] conter o dinheiro ilegal utilizado para gerar conteúdo ilícito e impulsionar a sua disseminação nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens eletrônicas. O caixa 2 ganhou nova versão: o 'caixa 2.0'", diz.

Para Reis, o projeto de lei das fake news (PL 2630/2020) que tramita no Congresso tem uma boa intenção, mas não conseguiu abranger pontos importantes e deve passar por alterações na Câmara.

"Não é adequado partir do pressuposto de que os portais e provedores sejam os responsáveis por todos os conteúdos postados. Seria algo equivalente a sugerir punição a uma empresa de telefonia por chamadas telefônicas de conteúdo ilícito realizadas por um dos usuários", pontua.

Em conversa com Tilt, o ex-juiz maranhense alerta que é preciso haver uma "terceira onda de mudança" na legislação eleitoral do país, assim como houve com a "Ficha Limpa" e que aprimore o combate a crimes e autores de corrupção eleitoral na internet.

"A primeira onda levou à aprovação em 1999, da primeira lei de iniciativa popular do Brasil, que era compra de votos. A segunda onda, dez anos depois, nos fez levar a conquista da lei da Ficha Limpa. Naquele momento nós não antevíamos a possibilidade da existência de um crescimento tão grande dos riscos políticos, dos riscos para a democracia no ambiente virtual", admite.

Leia a entrevista completa:

Tilt - Quando a Lei da Ficha Limpa foi criada não se vislumbrava ainda a disseminação de notícias falsas como vemos hoje. Isso mudou em quê as práticas ilícitas eleitorais?

Marlon Reis - Nós temos três grandes ondas de identificação e de aumento da preocupação da sociedade brasileira com ilicitudes no campo eleitoral. A primeira onda levou à aprovação, em 1999, da primeira lei de iniciativa popular do Brasil, que era compra de votos. A segunda onda, dez anos depois, nos fez levar à conquista da Lei da Ficha Limpa. Naquele momento nós não antevíamos a possibilidade de um crescimento tão grande dos riscos para a democracia no ambiente virtual.

É por isso que eu afirmo que é a chegada da terceira onda nas mudanças do direito eleitoral. Justamente para que a legislação seja atualizada e que possa fazer face aos grandes desafios e riscos para a democracia proporcionados por esse tipo de delito.

Comparado a outros, esse tipo parece que tem um alcance maior que os demais, por exemplo, que a compra de votos. Estamos diante de um crime com influência ainda maior no resultado eleitoral?

A compra de votos alcança segmentos que, ainda que sejam importantes, não deixam de representar apenas uma porção da sociedade. Já na distorção das informações políticas, somados a práticas como o uso de 'bots' e disparo automático de mensagens, o alcance do delito pode ser realmente muito maior. Ela expõe a fragilidade de todo o conjunto de eleitores, independentemente de classe social.

Tilt - Não temos ainda um conjunto de leis para inibir isso?

Marlon Reis - A tecnologia evoluiu numa velocidade impressionante e passou a deitar seus tentáculos sobre a formação da intenção de voto relativamente há pouco tempo. A legislação não foi capaz de acompanhar. Temos campanhas digitais reguladas segundo padrões analógicos. Precisamos de uma Lei da Ficha Limpa Digital, um conjunto de normas baseadas na responsabilização dos beneficiados e financiadores dos crimes eleitorais digitais, não no policiamento estatal da internet e das redes sociais.

Tilt - Você acha que essa nova forma se enquadra numa corrupção eleitoral 2.0?

Marlon Reis - Eu chamo de corrupção eleitoral 4.0, porque envolve conceitos de metadados e inteligência artificial, ou aprendizado de máquina. Estamos na fase 4.0 da corrupção eleitoral.

Tilt - Sobre o PL 2630/2020, acha que abarca algo que ajuda nesse combate?

Marlon Reis - Esse projeto é muito bem intencionado e parte de premissas verdadeiras, mas chegou a conclusões, a meu ver, equivocadas. E acabou se voltando muito à regulação das redes sociais, algo meio incompatível com os padrões próprios aos países de democracia avançada. Não é adequado partir do pressuposto de que os portais e provedores sejam os responsáveis por todos os conteúdos postados. Seria algo equivalente a sugerir punição a uma empresa de telefonia por chamadas telefônicas de conteúdo ilícito realizadas por um dos usuários.

O correto é voltar os olhos para os que realizam os atos ilícitos ou deles tiram proveito, sem esquecer a responsabilização dos financiadores. Como nos recorda sempre muito bem o Ronaldo Lemos, deve-se "seguir o caminho do dinheiro" para descobrir a origem das ilegalidades cibernéticas.

Tilt - Dá para dizer então que falta um marco legal penal para pegar quem financia?

Marlon Reis - Sim. A lei precisa evoluir muito nesse quesito. "Follow the money" [siga o dinheiro] é o centro da estratégia de investigação e responsabilização dos crimes eleitorais digitais.

Tilt - O caixa 2 de antes serve hoje como financiamento dos disparos de fake news em massa hoje?

Marlon Reis - Exatamente. As eleições até recentemente eram marcadas por desvio de recursos públicos por meio de empreiteiras para irrigar campanhas eleitorais. Na ponta, esse dinheiro era usado para cooptar apoios políticos e votos. Agora, com a proibição das doações empresariais, o desafio mudou: conter o dinheiro ilegal utilizado para gerar conteúdo ilícito e impulsionar a sua disseminação nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens eletrônicas. O caixa 2 ganhou nova versão: o "caixa 2.0".

Tilt - Como seria rastrear esse dinheiro? Estamos falando, muitas vezes, de servidores em outros países.

Marlon Reis - Em muitos casos as empresas ou pessoas que realizam os crimes cibernéticos estão no Brasil e seus financiadores também. Mas mesmo nas hipóteses mais complexas de mensagens oriundas do exterior e de transações financeiras realizadas no estrangeiro é possível investigar com considerável eficiência a partir dos protocolos de cooperação internacional.

Tilt - Fake news são capazes de mudar eleições?

Marlon Reis - Essas práticas já representam o maior risco para a normalidade e legitimidade das eleições em 2020. Já tivemos acesso a casos de delitos eleitorais graves sendo usados já agora, bem antes do início da campanha, e técnicas de disparo massivo de mensagens eletrônicas. Em 2020 essas ocorrências serão ainda maiores do que 2018, onde já foram muito marcantes.

Tilt - E diante de uma campanha eleitoral diferente pela pandemia pode ser mais grave...

Marlon Reis - O impacto dos delitos eleitorais cibernéticos se torna ainda mais sério no contexto da pandemia, pois agora as formas tradicionais de campanha estarão inibidas ou até mesmo inviabilizadas. É importante que os partidos e os candidatos se preparem para buscar meios jurídicos e tecnológicos de proteção. O cenário é muito perigoso.

Tilt - E como você acha que a classe política pode ajudar nesse combate também?

Marlon Reis - Os partidos e candidatos precisam se preparar para reagir de forma técnica aos ataques cibernéticos. Apesar das debilidades da legislação, há muito o que pode ser feito. É fundamental a contratação de serviços especializados para assegurar resposta mais imediata aos ataques. Uma notícia falsa se propaga e viraliza em instantes, tendo potencial para destruir toda uma campanha. A reação tem que ser segundo a mesma lógica. Só a tecnologia permite que isso seja feito.