'Racismo não é moda': pesquisadoras negras são as mais afetadas na pandemia
Sem tempo, irmão
- Produtividade acadêmica de mulheres caiu mais que a de homens na pandemia, diz estudo
- Mulheres negras com ou sem filhos e mulheres brancas com filhos foram os mais impactados
- Produtividade acadêmica de homens, especialmente os sem filhos, foi a menos afetada
Mãe de uma adolescente de 15 anos, a física experimental Zélia Ludwig tem dividido com o marido, físico teórico e também pesquisador, boa parte das tarefas domésticas no isolamento social após a pandemia de covid-19. Além de dispersar mais na produtividade com afazeres da casa, Zélia realiza uma atividade complicada de se desempenhar remotamente, devido à dificuldade de acesso a laboratórios e centros de pesquisa.
As dificuldades sofridas pela professora da UFJF (Universidade federal de Juiz de Fora) foram captadas em levantamento do movimento Parent in Science ("Pais na Ciência" em inglês). Em maio, dados preliminares já apontavam que a pandemia impactava a produtividade acadêmica de mulheres mais que a de homens.
Agora, com números conclusivos, o grupo concluiu que o fator raça, tanto quanto gênero e parentalidade, reforça desigualdades no período pandêmico. Durante abril e maio deste ano, coletou a resposta de quase 15 mil cientistas, entre alunos de pós-graduação, pós-graduandos e docentes/pesquisadores; destes, 3.629 só no Brasil.
Segundo o estudo, pesquisadoras negras, com ou sem filhos, têm tido sua produção intelectual mais prejudicada do que homens e mulheres brancos. Ludwig, de 52 anos, é a única negra no já restrito grupo de professoras do departamento de Física do Centro de Ciências Exatas da UFJF. Dos 41 docentes, cinco são mulheres.
Ela mescla bom humor e ironia ao falar do próprio currículo: "Costumo dizer que meu Lattes [plataforma acadêmica] morde. É como se, para ter alguma visibilidade, eu tivesse de comprovar o tempo todo o que está ali, inclusive para quem fez bem menos que eu", constata.
Sempre tive muita resiliência ao tocar o barco: quando dizem que algo não é para mim, aí é que eu quero fazer mesmo
Ela ainda empresta o próprio computador à filha, que têm aulas online, das 7 às 13h. "A parte do dia em que eu produzo melhor é de manhã, então, não tem muito que fazer senão ir atrasando algumas tarefas".
Mulheres negras e mães brancas: as mais afetadas
Os dados que mais preocuparam os autores da pesquisa dizem respeito a professores, uma vez que o impacto na atividade docente afeta outros financiamentos.
Sobre isso, o estudo constatou que o percentual de mulheres docentes (8%) que está conseguindo trabalhar remotamente não chega à metade da taxa dos homens (18,3%). Se elas têm filhos, o percentual cai ainda mais: apenas 4,1%.
No recorte de raça, os pesquisadores negros apresentam desvantagem. Apenas 10,6% deles mantiveram atividades durante a pandemia, enquanto 11,5% de seus colegas brancos conseguiram isso. Quando gênero e raça são analisados em conjunto, percebe-se que as mulheres negras foram as mais afetadas. Apenas 8,1% delas conseguiram trabalhar —índice de 8,2% entre brancas, de 14,1% entre homens negros e de 18,8% entre homens brancos.
Pesquisadoras negras que têm filhos são as que enfrentam maior desvantagem maior para produzir na academia: só 3,4% delas conseguiram trabalhar remotamente. Mas a situação não foi muito melhor entre mães brancas, já que 4,4% delas conseguiram manter o ritmo.
Vida acadêmica afetada até 2026
De acordo com a bióloga Fernanda Staniscuaski, 39, fundadora do Parent in Science e uma das coordenadoras da pesquisa, os resultados expõem duas situações:
- A produtividade acadêmica, principalmente a entrega de artigos científicos, de mulheres negras (com ou sem filhos) e mulheres brancas com filhos (principalmente com idade até 12 anos) foi mais afetada pela pandemia.
- A produtividade de homens, especialmente os sem filhos, foi a menos afetada pela pandemia.
Essa disparidade vai complicar a vida dessas mulheres no futuro, diz Staniscuaski, também professora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
"A menor submissão de artigos impacta a longo prazo, pois implica em menos chance de publicações no futuro, em perda de competitividade —e como via de regra os editais de financiamento de pesquisa analisam um período de cinco anos de produtividade, isso é algo que vai afetar o currículo até 2026", explica.
Ainda que mães e negras sejam as que encontram maior dificuldade durante a pandemia, há diferença na causa dos obstáculos.
Para as mulheres brancas, vem da parentalidade a grande diferença de produção delas em relação aos homens. Para as pesquisadoras negras não faz diferença elas terem ou não filhos: sinal de que o racismo tem maior impacto até que parentalidade. São necessárias ações afirmativas pela diversidade e inclusão na ciência. Na pandemia, isso ficou ainda mais evidente
Fernanda Staniscuaski, bióloga e professora da UFRGS
'Racismo, infelizmente, não é uma moda'
À frente do Cepem (Centro de Pesquisa em Materiais) da UFJF, Zélia Ludwig coordenou o desenvolvimento, no fim do ano passado, de uma fibra ótica artesanal. Construído com investimento da ordem de meio milhão de euros (R$ 3 milhões em valores atuais), o laboratório sofreu maior resistência externa do que dos materiais que pretendia estudar e testar, lembra a pesquisadora.
"Quando eu quis montar o laboratório, sentia aquilo do 'isso não é para você'. Lutei e consegui um equipamento de análise térmica de meio milhão de euros; fizemos tudo 'na unha', mas sempre com muita resistência a isso", afirma, sem entrar em detalhes.
Ela conta que, ao se identificar como pesquisadora, mulher e negra, começou a "sentir muita falta de outras mulheres como eu na ciência". Para mudar essa realidade, desenvolveu por três anos um projeto sobre materiais de baixo custo voltado a escolas públicas. É a chance que encontrou de mostrar a adolescentes e crianças, negros ou não, que a ciência está aberta também a eles.
"A ciência já é um meio dominado por homens, que fazem as políticas, os editais e estão nos comitês. A régua que mede o desempenho desses homens, com boas condições de estudo, em geral, vai ser a mesma que passará pela minha cabeça, independentemente de eu ser mulher, negra e ter vindo do subúrbio", diz Ludwig.
O racismo existe e muitas vezes é silencioso. Quantas mulheres negras estão na Sociedade Brasileira de Física, quantas são reitoras, coordenam programas de pós-graduação, estão decidindo coisas no país? Racismo, infelizmente, não é uma moda
Ela desistiu de mestrado porque o orientador a assediava
A astrofísica baiana Eliade Ferreira Lima, da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), mora com o marido no Rio Grande do Sul. Mesmo sem filhos, ela viveu um Big Brother involuntário que comprometeu seu rendimento acadêmico. Durante a pandemia, passou parte do confinamento com os enteados. Como um deles testou positivo para coronavírus e foi para a casa do pai, quem chegava para visitá-lo acabava ficando isolado junto.
"Vivemos alguns dias de não poder sair de casa. E era um período em que eu tinha bastante trabalho e precisava lidar mais com a família, sob a tensão de ter um caso positivo e dar conta de tudo", recorda-se.
O racismo estrutural tem feito com que as condições sejam negativas à mulher negra independentemente da pandemia; é como se essa ideia de que o negro é menos capaz estivesse enraizada, sabe? Se essa mulher já não é lembrada normalmente, durante a pandemia isso piora, porque, não sendo vista, não é lembrada
Eliade Ferreira Lima, astrofísica da Unipampa
Lima celebra o fato de "nunca" ter sido convidada, como astrofísica, "a falar sobre mulheres negras", mas sobre astrofísica estelar. Hoje doutora em física, a pesquisadora se lembra de um mestrado do qual desistiu, em 2006, em Natal, por causa do assédio de seu orientador.
"Eu tinha 23 anos, ouvia coisas como 'um dia quero saber o que a baiana tem' e era demasiadamente elogiada por ele. Eu dizia que ele era como um pai pra mim. Quando comecei a namorar, recebi ameaças, como se eu fosse propriedade dele. Dizia que iria retirar a bolsa que eu recebia do CNPq".
O recomeço veio em São Paulo, onde Eliade finalmente fez o mestrado e de onde saiu, em 2010, para o Rio Grande do Sul. Filha de uma ex-empregada doméstica que hoje é agente de saúde e um motorista de ônibus, a astrofísica diz acreditar em redes de apoio na academia não somente para lidar com questões mais drásticas, como o assédio sexual, mas também para promover a transformação.
"Redes de apoio são fundamentais. Tentar algo sozinha é algo que eu não recomendo. Ter noção disso me fez falta, mas agora eu acredito que ter em quem confiar e para quem fazer perguntas é essencial não só para a produtividade acadêmica, mas para a vida."
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