Topo

OPINIÃO

Exclusão digital na pandemia é nova forma de discriminação, diz ativista

Janaina Garcia

Colaboração para o UOL

05/08/2020 18h02

Lidar com os efeitos colaterais da pandemia de covid-19 vai demandar que governos assegurem a seus cidadãos condições adequadas de acesso à internet sob pena de emergirem na sociedade novas formas de discriminação em um cenário de desigualdade digital ainda mais profunda. Vai demandar, em suma, que os governos entendam a tarefa como um novo direito social a ser garantido.

A avaliação é do empreendedor digital italiano Stefano Quintarelli, convidado da semana no ciclo "Conversas na Crise - Depois do Futuro", organizado pelo Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Unicamp em parceria com o UOL.

Quintarelli, 55, é empreendedor e ativista. Ele atua há mais de 25 anos em temas ligados à inteligência artificial e internet, coordena o Comitê Gestor da Agência pela Itália Digital e, entre 2018 e 2013, foi deputado da República - ocasião em que participou de discussões sobre a Carta de Direitos para a Internet e propôs projetos de lei sobre regulação e tecnologia, militando pela neutralidade de rede.

Indagado se a existência de uma grande parcela da população do Brasil e do mundo ainda estar à margem do chamado mundo online pode ampliar o fosso digital entre mais e menos favorecidos, o especialista afirmou que essa divisão digital pode produzir mais efeitos nocivos na sociedade.

"Uma das tarefas da administração pública e do Estado, das escolas, vem a ser a de realizar programas para inclusão digital", disse. "Dizem que o teletrabalho é muito bonito, mas quando você tem quatro pessoas, dois quartos, mesmo que você tenha computador e telefone, é um desastre, é dramático trabalhar e estudar", afirmou.

"Temos desigualdades sociais, com falta de dispositivos de conexão, de educação, de instrução, mas há situações sendo extremas em que podia haver educação, mas não há condições ambientais, as pessoas não conseguem se conectar. E temos que pensar nessas pessoas, em um tipo de inclusão, tanto tecnológica, como de infraestrutura, de redes, de celulares e de formação", disse.

Para o ativista, ter uma internet adequada é um novo "direito social". "É uma nobre tarefa que não era tão percebida pelos governos, mas que hoje eles devem ter a missão de favorecer a inclusão total da internet verdadeira, muito mais do que essa pouca atenção que até aqui foi dada", disse.

Segundo Quintarelli, os governos priorizam pensar em saúde, educação e em possibilidades de deslocamento, mas não em formas de combater e reduzir a desigualdade e as divisões digitais.

"Deve-se também ter a possibilidade de colocar a internet no nível adequado, [porque] essa é uma nova forma de discriminação de diferença em termos de sociedade", defende o ativista italiano, a quem essa se configura "uma nova missão dos governos".

Educação digital: tecnologia afeta a didática

Outro aspecto que a pandemia tem afetado é o acesso de crianças, jovens e adultos a aulas presenciais em escolas e universidades - especialmente no sistema público.

Esse formato de escola remota, na avaliação de Quintarelli, deverá penalizar especialmente crianças à medida que força aos docentes "que entrem na tecnologia didática" - e nesse caso, independentemente da conjuntura econômica.

"Um grande problema é que mesmo nas condições favoráveis, como pode ser no colegial, segundo grau, ou em situações economicamente não desfavorecidas, nós temos que fazer com que os docentes entrem na tecnologia didática. E quando a tecnologia entra na didática, a didática muda; as aulas dentro de uma classe nasceram em um livro, antes —não existiam aulas frontais, presenciais", explica, para completar: "A tecnologia modifica a didática, e estamos ainda no início de se saber de que forma poderíamos, ou qual seria a forma melhor de realizar a didática no [ambiente] digital', conclui.

Valores humanos nos algoritmos em serviços digitais

Quintarelli também é fundador da i.net, um dos primeiros provedores de acesso à internet na Itália, formado pela Università degli Studi di Milano, onde criou a Milano Network Researchers and Students (Rede de Pesquisadores e Estudantes de Milão), e membro do High-Level Expert Group on Artificial Intelligence (Grupo de Especialistas de Alto Nível sobre Inteligência Artificial) da Comissão Europeia, criado em 2018.

Ano passado, ele lançou o livro "Instruções para um Futuro Imaterial" (Editora Elefante). Sobre o tema de sua obra, ele falou na entrevista ao UOL e ao IdEA sobre o avanço das decisões tomadas por algoritmos em serviços digitais, em serviços públicos - inclusive algoritmos que fazem parte da inteligência e do avanço das tecnologias de inteligência artificial.

Se é possível incluir valores humanos — como solidariedade, antirracismo e igualdade -nessas decisões? O ativista diz apostar que sim e cita o trabalho de um grupo de 52 especialistas da Comissão Europeia sobre inteligência artificial, oriundos de diferentes países e de profissões diversas, que concluiu o trabalho feito há dois anos há cerca de três semanas. A previsão é que os últimos resultados sejam apresentados nesses próximos dias.

"Trabalhamos durante dois anos, e nas primeiras reuniões, nos colocamos como objetivo definir aquilo que, para nós, chamamos de uma inteligência artificial digna de confiança —iniciamos através da consideração que, em relação aos valores europeus, não pode haver riqueza sustentável ou geração de riqueza sustentável, se não respeitarmos os valores fundamentais europeus de solidariedade, de inclusão, e assim por diante. Desenvolvimento de tecnologia que não considera sustentabilidade a longo prazo, no final das contas, é um péssimo investimento para a Europa também, se desenvolvesse algo que alguém poderia chamar de predatória.

Conduzido pelo jornalista Paulo Markun, o programa exibido nesta quarta-feira (5) teve a participação de Virgílio Almeida, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Rafael Zanatta, coordenador de pesquisa do Data Privacy Brasil, e do poeta e linguista Carlos Vogt, presidente do Conselho Científico e Cultural do IdEA.

Assista à integra da entrevista