Do caos à inovação: startups reinventam o jeito de se deslocar na Índia
Sem tempo, irmão
- Com motoristas de tuktuk e pagamento eletrônico, OlaCabs é "Uber" do indiano
- Maior da Índia, empresa tem 70% de participação no mercado de apps de transporte
- Para lutar contra poluição, Ola Eletric quer substituir tuktuks por veículos elétricos
- Yulu vende e aluga bicicletas conectadas aos sistemas de transporte público
- Ather produz e comercializa scooters nacionais movidas a eletricidade
O trânsito nas maiores cidades da Índia não é para principiantes. Carros, ônibus, táxis, charretes, tuktuks (um tipo de triciclo com vagas para dois passageiros) e animais enchem as ruas da cidade desde a manhã até a madrugada do outro dia. Startups surgiram nos últimos anos com o objetivo de resolver parte dos problemas de mobilidade, tão comuns na vida dos indianos. E a julgar pelo seu crescimento rápido, estão no caminho certo.
Em Mumbai, maior cidade do país com 26 milhões de pessoas, um de seus moradores perdia duas horas e 40 minutos todos os dias de sua casa ao instituto de tecnologia local. Com essa situação em mente, Bhavish Aggarwal criou em 2010, então com 25 anos, a OlaCabs, empresa atualmente avaliada em US$ 6,8 bilhões (R$ 36,5 bilhões).
Isso aconteceu justamente quando as caronas por aplicativos começaram a ascender mundo afora, com o surgimento do Uber nos Estados Unidos e o Cabify, na Europa. Aggarwal, agora com 35 anos, convenceu investidores de seu país e fundos estrangeiros, como o japonês Softbank, de que os apps de transporte seriam um fenômeno na Índia e que esse mercado não poderia ser controlado por empresas de fora.
Segundo país mais populoso do mundo, com 1,3 bilhão de habitantes, a Índia é um mercado e tanto para o setor. Além de Mumbai, outras megacidades são comuns no país: Nova Déli e Calcutá possuem ambas mais de 20 milhões de habitantes. Em comparação, o Brasil só tem uma conurbação que ultrapassa esse número: a Grande São Paulo, com 21 milhões de pessoas, segundo dados de 2018 do IBGE.
"Serviços como Uber têm muita dificuldade na Índia, simplesmente porque a população não precisa necessariamente de um táxi, mas muitos modais (tipos) de transporte. Quem melhor conhece esta realidade somos nós e, por isso, temos uma vantagem competitiva para apresentar soluções mais adequadas", conta Aggarwal em entrevista exclusiva a Tilt.
A estratégia de sucesso
O OlaCabs financiou a compra de carros novos para motoristas e adicionou condutores de tuktuk à sua plataforma. Com promoções, subsídios e a vantagem de cobrar eletronicamente pelas corridas (via aplicativo), o app indiano se tornou um fenômeno.
Para Radesh Kuma, professor de engenharia de trânsito da Universidade de Ciências de Tecnologia de Bangalore, uma das razões da rápida adesão foi o fato de a Ola acabar com os conflitos entre passageiros e motoristas.
"Eram muito comuns discussões sobre o preço da viagem e acusações de fraudes e golpes. Com a cobrança dentro do app, monitorada por GPS, viajar com a Ola tornou-se menos estressante", avalia Kuma.
A solução da empresa também permitiu que milhões de trabalhadores utilizassem corridas por apps para trajetos complementares, como ir de casa até o metrô ou um terminal de ônibus.
Soluções de big data, que otimizam o deslocamento dos carros para locais geográficos com maior fluxo de pessoas, também contribuíram para melhorar a fluidez do transporte nas cidades. O crescimento meteórico da OlaCabs, no entanto, não ocorreu sem dores.
As pedras no caminho
Ao priorizar a rápida expansão de seu serviço e atender aos desejos dos investidores precoces, a empresa não controlou a qualidade dos parceiros que entravam em sua rede. Começaram a surgir rumores de casos de sequestro, assalto, estupros e assassinatos que tiveram passageiros como vítimas, e isso danificou a imagem da empresa no seu momento inicial.
Os relatos de violência acabaram sendo bem explorado por competidores, como o Uber, que hoje detém 25% de participação no transporte por apps na Índia, o que reduziu a imensa vantagem da Ola no mercado. Se antes a empresa chegou até 90% de participação no país, hoje detém 70%, o que ainda significa uma folgada liderança.
O app afirma ainda que com a pandemia da covid-19 voltou a ganhar a simpatia dos usuários, por causa dos métodos de higienização dos seus carros. Películas que separam os bancos da frente e de trás são obrigatórias e os motoristas devem não só usar máscaras e luvas, como borrifar álcool grau 70º em maçanetas e bancos a cada viagem.
Contra a poluição: carros elétricos, bicicletas e patinetes
Apesar de não ser autossuficiente em petróleo, a Índia possui um dos maiores parques de refino de combustível no mundo. O processamento de óleo bruto importado do Oriente Médio fez da família Ambani, controladora da Reliance, maior petroquímica do país, uma das mais ricas do mundo.
É graças a esse parque industrial que o combustível chega barato ao consumidor indiano e, consequentemente, polui o ar das grandes cidades, muitas vezes a níveis insalubres. Em Déli, por exemplo, há momentos do ano em que este indicador de partículas de enxofre e outros resíduos químicos chega a 500 por metro cúbico de ar. De acordo com a OMS (Organização Mundial de Saúde), o limite máximo é de 25.
Uma spin off (divisão independente) da OlaCabs, a Ola Eletric, quer minimizar o problema elaborando um programa de substituição de carros a gasolina por veículos elétricos. Até o início desse ano, 10 mil riquixás (ou tuktuks) foram trocados. Ainda é um avanço modesto, já que o país tem mais de 780 mil destes veículos, de acordo com o ministério dos Transportes.
Bicicletas e patinetes elétricas também estão vendidas e alugadas nas maiores cidades do país como opção de transporte limpo.
Financiada por fundos de capital de risco local —que focam em empresas de médio porte que já têm seus de clientes e receita, mas buscam crescimento—, a startup Yulu conta com parceria com sistemas de transporte público.
"Sabemos que nosso transporte de massa não chega até todos os bairros de Mumbai ou Déli, cidades em que atuamos. É um fenômeno parecido como o que ocorre no Brasil, em que as linhas de metrô e corredores de ônibus ainda requerem investimentos. Então, nossa solução permite um transporte seguro, não poluente e livre de trânsito desde a casa das pessoas até o modal de transporte de massa mais próximo", conta Amit Gupta, fundador da startup.
Para usar os veículos da Yulu, é preciso baixar um app e fazer um depósito, que pode ser pago via PayTM, empresa líder em pagamentos móveis no país e que atende mais de 560 milhões de indianos.
O código QR usado no app para "desbloquear" uma bicicleta pode usar usado, também, nas roletas de metrô e terminais de trem e ônibus das cidades, integrando o custo das bikes à tarifa.
"Para a população trabalhadora, que conta cada rúpia (moeda local) no bolso para passar o mês, os descontos gerados pela integração são muito vantajosos e, na prática, esta solução está estimulando a troca do uso do carro pelo transporte público", avalia Kuma.
A Yulu não revela quantos veículos têm nas ruas indianas, mas seu modelo de negócios sofre do mesmo mal que acomete empresas similares no mundo, como a americana Lime ou a Grow, que atuou no Brasil: vandalismo, acidentes e conflitos regulatórios.
O apoio das prefeituras é importante para estes modelos "novos" serem competitivos e se expandirem. "No mundo todo, o transporte urbano é subsidiado, empresas privadas de ônibus e taxistas recebem isenções e auxílios. Por que não fazer o mesmo com as startups que estão contribuindo para reduzir o trânsito?", sugere Kuma.
Moto elétrica em vez do carro
Na esteira do boom de opções elétricas, a startup Ather produz e comercializa na Índia scooters nacionais movidas a eletricidade.
Elas seriam apenas mais uma moto com fonte alternativa de energia, se Tarun Mehta, fundador Ather Energy, não tivesse criado um novo modelo de negócio: o uso desses veículos como um serviço. Em vez de comprá-las, você paga uma mensalidade e tem tudo o que precisa: seguro, manutenção e combustível.
As motos, que exibem um tablet de sete polegadas em seu painel, têm conexão móvel e conversa com o smartphone do usuário. Os veículos podem ser ligados e desligados remotamente.
Todos os dados gerados pela moto são enviados para a nuvem. Por notificações no smartphone, o usuário recebe alertas sobre quando deve calibrar os pneus, trocar peças ou se alguma queda ou pequena colisão causou avarias.
Uma carga de 80% leva duas horas, garante 100 km de autonomia e pode ser feita, em casa, ou gratuitamente, em pontos da Athern instalados nas maiores cidades indianas.
O contrato para uso da scooter custa US$ 90 por mês (R$ 467), valor ainda elevado para os padrões indianos, mas atraente para pessoas sem carro e que desejam evitar os custos de realizar um financiamento. O modelo tem permitido que muitos usuários deixem seus automóveis poluentes na garagem, trocando-o por motos.
Startup sozinha não faz milagre
Para especialistas em mobilidade urbana, as iniciativas do ecossistema de startups indianas, sozinhas, não substituem o custoso e urgente investimento público em grandes obras estruturantes. Em resumo, ainda falta gerar polos de trabalho em bairros-dormitório, evitando o deslocamento diário de milhões de pessoas, e tirar do papel velhas promessas de expansão da malha urbana de metrô, VLTs e corredores exclusivos de ônibus.
Mas, aliadas ao planejamento público, a criatividade das soluções das startups indianas pode dar um alívio ao estressante trânsito que consome a paciência das pessoas e a produtividade da economia local.
Ainda há muito trabalho pela frente. Atualmente com 1,3 bilhão de habitantes, a Índia deve tomar da China o posto de nação mais populosa do mundo até 2027, de acordo com projeção das Nações Unidas. Atualmente, a OlaCabs tem 27 milhões de usuários mensais ativos no país contra 15 milhões do Uber.
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