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Fone sem fio já era, promessa agora é ouvir o som direto no cérebro

Marcel Lisboa/ UOL
Imagem: Marcel Lisboa/ UOL

João Paulo Vicente

Colaboração para Tilt

21/08/2020 04h00

Há uma promessa no ar para a última sexta-feira de agosto. No dia 28, Elon Musk garantiu que vai anunciar avanços relevantes na Neuralink, a companhia criada por ele que pretende conectar o cérebro humano a computadores de forma nunca antes vista. O teor dos avanços ainda é um mistério, mas no fim de julho Musk sugeriu um uso inusitado: fazer streaming de música direto para o pensamento.

Bom, Musk é um falastrão. A ideia do stream para o cérebro apareceu numa resposta monossilábica a um usuário do Twitter, como uma possibilidade surgida de supetão. Por outro lado, a SpaceX, outro dos seus empreendimentos, tornou-se a primeira empresa privada a levar astronautas para o espaço.

Então dá para botar fé nessa promessa? Talvez a pergunta melhor seria se vale a pena. "Uma pessoa saudável abrir a cabeça para ouvir música não me parece algo tão interessante", diz Ludymila Borges, pesquisadora do Núcleo de Tecnologias Assistivas da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), que pesquisa como determinadas frequências sonoras podem melhorar a memória.

A Neuralink é uma interface cérebro-máquina invasiva: um microchip implantado no cérebro ligado a inúmeros microfios, cada um deles recheado de eletrodos. Estes servem como via de mão dupla: tanto leem os sinais elétricos disparados por neurônios quanto os estimulam com sinais gerados por computador.

A longo prazo —num horizonte quase ficcional—, a ideia de Musk é integrar pessoas a inteligências artificiais e levar a capacidade cognitiva humana a outro patamar. A curto prazo —num passo além do que outras interfaces cérebro-máquina fazem hoje—, é auxiliar pacientes com problemas como Parkinson.

Adeus, surdez?

No meio do caminho, em teoria seria possível eliminar a etapa acústica da transmissão de sons e enviá-los direto para serem interpretados pelo cérebro via estimulação elétrica. O resultado disso, no entanto, é imprevisível.

"O som é processado por vários cantinhos do cérebro, para entendermos de onde vem esse som ou como se parece uma voz, por exemplo", diz Katarina Leão, chefe do Laboratório de Audição e Atividade Neuronal do Instituto do Cérebro, ligado a UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte). "Se você coloca esses eletrodos, não sei se o resultado vai ser o sentimento de um som artificial ou se o cérebro acha que é uma alucinação", diz ela.

Além disso, Leão ressalta que é preciso levar em consideração se a pessoa ouvirá outros sons do modo tradicional, e como esses estímulos diferentes vão interferir uns com os outros. Em resumo, mesmo que funcione, nada garante que seja uma experiência como estamos acostumados.

"Provavelmente, ainda que parecido, seria uma nova sensação", afirma Borges. "Os nossos sentidos interpretam o real tocando, falando, vendo, sentindo cheiro, tudo se transforma em impulsos elétricos mandados para o cérebro. Por outro lado, essa proposta poderia manipular totalmente como nós estamos experimentando a realidade."

Frente aos riscos de inserir o microchip da Neuralink no cérebro, essa alternativa se torna um pouco mais atrativa caso possibilite recuperar audição em surdos, por exemplo. Nesse caso, a interface se tornaria uma espécie de implante coclear melhorado. Disponíveis há algumas décadas, implantes do tipo são conectados direto ao nervo auditivo do paciente e reduzem problemas no ouvido.

Na verdade, segundo Leão, a comparação entre o Neuralink e um implante coclear ajudam a entender como a experiência de fazer um streaming de música para o cérebro pode soar estranha.

"Os implantes cocleares funcionam muito bem para crianças que nasceram surdas, nunca ouviram nada antes. Mas quem tinha o sistema auditivo intacto e depois perdeu a audição em geral não gosta", conta a pesquisadora. "Fica tão artificial, tão estranho, que as pessoas não gostam de colocar."

Além de ouvir música

Talvez, diz Leão, o Neuralink funcione melhor para outras coisas que não escutar música. Na verdade, na mesma série de tuítes em que prometeu o streaming cerebral, Elon Musk também deu a entender que a sua interface cérebro-máquina poderia estimular a produção de substâncias serotonina e ocitocina para ajudar em casos de depressão ou ansiedade, por exemplo.

Mesmo no campo dos sons, há possibilidades interessantes. Em seu mestrado em psicobiologia na UFRN, João Carlos Alencar buscou estabelecer relações entre impulsos sonoros rítmicos e a capacidade de cognição de algumas pessoas. "A percepção de ritmo tem um efeito bastante importante no sistema nervoso, em especial nas áreas motoras. Não à toa a gente dança, têm esse impulso de se mexer quando ouve algumas músicas", diz.

Num cenário hipotético, Alencar acredita que seria curioso associar essa frente de trabalho com as possibilidades da Neuralink. Em teoria, seria como uma estimulação sonora contínua direto no cérebro para as pessoas se concentrarem, pensarem e agirem melhor. "É uma fronteira das duas áreas, tanto da interface, quanto no desenvolvimento do trabalho com sons para melhoria de habilidades", afirma.

Pelo menos no Twitter do Elon Musk, não há limites para as possibilidades da Neuralink. Vamos ver na prática.