Por que um pai decidiu processar o YouTube para proteger as crianças
Você já pensou na quantidade de dados coletados sobre o seu filho enquanto ele assiste a vídeos de desenho no YouTube, ou na influência que propagandas segmentadas podem ter sobre ele? Um inglês pai de três crianças está processando a plataforma, acusando-a de coletar ilegalmente dados dos filhos dele, usuários do serviço de streaming do Google, e de outras 5 milhões de crianças na Inglaterra e no País de Gales.
Duncan McCann, pesquisador sênior da New Economics Foundation, entrou com uma ação judicial contra o YouTube na Suprema Corte do Reino Unido no começo do ano no nome dele e de todos os pais de menores de 13 anos da Inglaterra e do País de Gales. O caso só se tornou público, no entanto, no dia 14 de setembro, quando foi anunciado pelo escritório de advocacia que cuida da ação, o Hausfeld LLP.
A LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) proíbe que plataformas como o YouTube coletem dados de pessoais de crianças e adolescentes sem o consentimento dos pais, tal qual o Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia (a GDPR, sigla em inglês), que inspirou a nossa legislação.
O YouTube tem sido mais pressionado para proteger as crianças e tem respondido à pressão aos poucos. Em 2015, criou o YouTube Kids, dedicado somente a menores de idade. Em 2019, foi descoberto que pedófilos usavam vídeos com crianças e a área de comentários do YouTube para trocar informações sobre erotização de conteúdo. Além disso, a publicidade para crianças não era devidamente moderada. Como resposta, realizou diversas medidas, como fechar comentários e desmonetizar canais de youtubers infantis.
Como a ação tem um caráter coletivo, se a Justiça der ganho de causa a McCann, o Google poderá ser obrigado a pagar mais de 2 bilhões de libras esterlinas (o equivalente a cerca de R$ 14 bilhões). No ano passado, a gigante de tecnologia foi multada em US$ 170 milhões nos EUA por usar informações de menores para direcionar publicidade.
"Os dados que estamos focando nessa ação são dados básicos como a contagem do tempo [que a criança passa na plataforma], a data, a URL, o endereço do IP e informações sobre os aparelhos [de onde o YouTube está sendo acessado]", contou McCann em entrevista a Tilt.
O escritório responsável pela ação informou que a estimativa é de que o caso seja julgado entre setembro e dezembro de 2021 e que até 2022 haja um veredito. Os representantes legais mantêm ainda um site em que é possível ver mais informações sobre a ação e ter acesso aos documentos do processo (em inglês).
O YouTube se defende dizendo que não comenta casos específicos, e que desde o ano passado faz mudanças sobre o tratamento de dados do conteúdo infantil na plataforma.
De futebol a Peppa Pig
McCann vive em Londres com os três filhos, todos menores de 13 anos. Essa é a única informação que ele pode dar a Tilt sobre as três crianças, porque os advogados do caso solicitaram uma ordem de anonimato para proteger os menores. Mas o pai disse que os três são consumidores assíduos dos vídeos disponíveis no YouTube.
"Os dois mais velhos amam assistir aos destaques dos esportes pela plataforma. Na televisão, não tem tanto conteúdo sobre futebol ou outros esportes que eles gostam de acompanhar, então eles passam muito tempo vendo vídeos sobre o assunto no YouTube", diz. Já o filho mais novo gosta de ver desenhos animados, coisas da Patrulha Canina, Peppa Pig, contou McCann.
Os filhos dele não são exceção. O YouTube é uma das plataformas digitais mais usadas por menores de idade no Reino Unido. Um estudo da Ofcom —regulador de comunicações do Reino Unido— mostrou que 50% das crianças na Inglaterra e no País de Gales com idades entre três e quatro anos, e 90% das crianças com 12 anos, usam o serviço principal do YouTube —e não o YouTube Kids— o que daria em torno de 5 milhões de crianças.
Apesar de hospedar também conteúdo direcionado a grupos de idades mais jovens na plataforma principal do YouTube, o Google afirmou em nota enviada a Tilt que a plataforma é aberta e destinada a adultos, "como está observado em nossos termos de serviço".
"Seu uso por crianças sempre deve ser feito em contexto familiar e em companhia de um adulto responsável. Lançamos o aplicativo YouTube Kids como um destino dedicado ao público infantil e estamos sempre trabalhando para proteger crianças e famílias na plataforma", diz o texto.
Para McCann, é muito fácil dizer que a plataforma é para adultos sem oferecer barreiras que previnam o uso de crianças e a oferta de conteúdo inadequado a elas. "É a mesma coisa que dizer 'nós fizemos uma lei aqui que diz que você só pode comprar bebida alcoólica se for maior de 18 anos', mas ainda deixar crianças entrarem no pub e comprarem bebidas alcoólicas", exemplificou.
Pai e pesquisador de economia digital
Há três anos Duncan McCann lidera o programa de economia digital na fundação onde trabalha. Durante esse período começou a olhar mais a fundo como dados e a economia digital funcionam, e sendo pai, passou a enxergar a exposição dos dados dos filhos a partir de outra perspectiva.
"Eu acho que a maioria das pessoas imagina que a coleta de dados está acontecendo, mas que a plataforma faz isso algumas vezes, que ela pode fazer alguma coisa com todos aqueles dados, mas provavelmente não fará", disse.
"A realidade é muito maior: cada ação que tomamos no mundo digital não só é gravada como é comercializada e compartilhada. Na verdade, você não tem ideia sobre o que está acontecendo com os seus dados, mesmo quando você está estudando sobre isso", acrescentou.
McCann afirma que informações como endereço de IP, tempo de engajamento com o conteúdo e URL, podem parecer básicas e inofensivas, mas ajudam o Google a construir um perfil completo do usuário, com suas preferências, interesses e até dos seus estados de espírito, tal qual o holograma do adolescente Ben, personagem fictício no documentário da Netflix "O Dilema das Redes Sociais". O objetivo é promover anúncios.
"Anúncios online se tornaram mais do que apenas nos persuadir a comprar coisas, também sobre mudar nossas opiniões. (...) Existe obviamente uma chance de alguns desses maus anúncios serem vistos pelas nossas crianças. Na TV, se o canal é para crianças, existem regras sobre o que e quando as coisas podem ser mostradas, mas online não existem essas regras rígidas e rápidas", disse.
Além disso, para ele, o bombardeio de propagandas a cada vídeo pode criar nas crianças consumismo exacerbado, ansiedade e outros problemas. "Isso está ensinando às crianças a estarem basicamente sempre desejando algo e, por isso, elas não estão felizes hoje", acredita.
Os filhos de McCann ainda não têm smartphones, mas ele conta que a família já está chegando ao ponto de que eles terão que ter os próprios aparelhos. "O mais velho terá um quando ele começar o ensino médio", disse.
Ele afirma que proibir não é o caminho para proteger nossas crianças. "O futuro será digital e é importante que ensinemos nossos filhos a maneira certa de se envolver com o mundo online. (...) Senão, ele vai chegar a universidade sem ter aprendido as ferramentas necessárias para navegar na internet e fazer parte dessa economia digital de maneira correta", diz.
Ação por mudanças
O britânico espera que a ação coletiva movida por ele traga mudanças na plataforma. McCann deu como exemplo a indústria automobilística dos anos 60 para dizer que não é contra essas plataformas digitais. Ele quer que elas sejam seguras para todos, principalmente para as crianças.
"Nos anos 60 e 70, a indústria de carros estava produzindo aos montes, os negócios estavam crescendo, era um setor crescente na economia. Mas os carros não eram seguros, não tinham cintos, airbags, então os reguladores e o público passaram a dizer 'vocês deveriam fazer produtos mais seguros'. A indústria dizia que regulá-los os impediria de inovar, que iria matá-los", disse.
Mas foi a combinação de legislação reguladora e processos judiciais caros que fizeram com que a indústria se tornasse mais segura e até passasse a usar sua segurança como atrativo comercial.
"Mas eu quero que a internet seja muito mais parecida com um carro agora, onde você entra e sabe que os designers da plataforma em que você está já tiveram que levar em consideração muitos recursos que garantem que você esteja tão seguro quanto possível lá", disse.
Leis como a GDPR e a nossa LGPD são um caminho para trazer mais segurança aos nossos dados, mas, segundo McCann, ações judiciais como a que ele está movendo dão suporte ao cumprimento dessas legislações.
"É preciso ter ações judiciais que digam as empresas 'se você continuar coletando dados, sem o consentimento correto, especialmente dados confidenciais, então haverá uma consequência para isso', 'se você continuar transmitindo todos os nossos dados pessoais pela rede de tecnologia de publicidade, sem as devidas salvaguardas, haverá consequências'", disse.
YouTube sente pressão
Em setembro do ano passado, o YouTube passou a tratar todos os dados de quem assiste a conteúdo infantil na plataforma principal do YouTube como se tivessem vindo de uma criança. As mudanças, diz o Google, foram fruto da análise de áreas críticas, informadas por pais, especialistas e reguladores.
"Limitaremos a coleta de dados em vídeos para crianças apenas ao que for necessário para apoiar a operação do serviço. Também deixaremos de veicular anúncios personalizados totalmente neste conteúdo, e alguns recursos não estarão mais disponíveis, como comentários e notificações", informou a empresa em postagem no seu blog na ocasião. O Google/YouTube também disse que usaria aprendizado de máquina para encontrar vídeos que visam claramente o público jovem.
McCann disse ver as mudanças com bons olhos e afirma que a empresa está reagindo à pressão da sociedade. Mas, para ele, as mudanças ainda não são suficientes. "Eles deveriam ser muito mais sérios para proteger as nossas crianças online e realmente não reunir dados sobre elas. Não apenas não mostrar propaganda", acredita.
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