Marcelo Gleiser: Brasil não exporta tecnologia e tem espírito de colônia
O governo brasileiro desperdiça o talento de promissores cientistas do país com cortes de bolsas e educação de má qualidade e prefere exportar alimentos a tecnologia, na opinião de Marcelo Gleiser. O renomado físico e astrônomo concedeu entrevista exclusiva a Tilt na ocasião da 25ª edição do SAP Now, evento online de soluções tecnológicas que aconteceu no mês passado.
Ele também acredita que uma economia baseada na mentalidade de extrativismo, sob o tripé agricultura, pecuária e mineração, dá ao país "espírito de colônia" e é uma política extremamente perigosa para o futuro do Brasil.
Gleiser nasceu no Rio de Janeiro e hoje é professor da Universidade de Dartmouth, nos Estados Unidos. Autor de centenas de artigos e ensaios e de 14 livros, foi vencedor do Prêmio Jabuti e do Prêmio Templeton, que já foi dado a personalidades como Madre Teresa e Dalai Lama.
Abaixo, confira a entrevista exclusiva, em que Gleiser fala sobre ciência, humanidade, as perspectivas para o futuro e novas tecnologias que nos tornam conectados e produtivos durante o isolamento social.
Tilt: Como vê os possíveis retrocessos que a humanidade pode viver em decorrência da pandemia do novo coronavírus? No Brasil, temos visto cortes de verbas para pesquisa nos últimos meses.
Marcelo Gleiser: Vivemos uma grande incógnita para uma geração que não passou por grandes guerras. Não se sabe como será o futuro, e precisamos refletir sobre os caminhos que humanidade deveria tomar de modo a sobreviver. No caso do Brasil, a política de cortes de verbas para a ciência veio bem antes da pandemia. A visão do governo atual, infelizmente, reflete uma atitude muito antiquada para um país com um potencial como o nosso: a ideia de que o Brasil não exporta ideias, não exporta tecnologia. Exporta apenas porco, galinha, arroz, soja e minérios.
Esse espírito de colônia, de achar que podemos segurar a economia e o desenvolvimento apenas através de uma mentalidade de extrativismo, com agricultura, pecuária e mineração, é uma política extremamente perigosa para nosso futuro. Enquanto tiver madeira pra queimar, que eventualmente vai acabar, o Brasil vai ser essa fazenda do mundo.
Quando olhamos para outros países com os quais estaríamos competindo economicamente, como a Índia, os Emirados Árabes e a própria China, vemos uma política completamente diferente. Eles estão investindo pesado em ciência, em tecnologia.
Os cortes de verbas por aqui são terríveis, comprometem o futuro de uma geração de engenheiros, cientistas e outros técnicos. São pessoas que, como eu, adoram ciência e querem aliviar o sofrimento humano através da ciência. O Brasil tem pesquisadores de altíssimo nível, tem até diversas iniciativas para fazer a vacina para o coronavírus. Mas ninguém vai curar uma doença falando com um açougueiro, fazendeiro ou piloto de Fórmula 1.
Tilt: E o que precisa mudar para superarmos essa crise, que não é só de saúde pública, mas socioeconômica?
Marcelo Gleiser: Acredito que a única maneira de sermos uma economia competitiva no século 21 é não sermos unidimensionais. Precisamos de um leque de investimentos, um portfólio da criatividade econômica do país. Mas vemos um desespero da comunidade científica, das pessoas das áreas das tecnologias digitais, que não sentem respaldo do governo para arriscar ideias.
Quando olhamos para as tecnologias que usamos no dia a dia, pouquíssimos são feitos e desenvolvidos genuinamente no Brasil. Mas por que o Brasil não é um país que quer produzir tecnologia? Conseguir, sabemos que consegue. Então o problema é uma posição extremamente retrógrada do governo.
A Coreia do Sul era um dos países mais pobres do mundo na década de 50, o Japão e a Alemanha estavam destruídos depois da Segunda Guerra. Usaram o apoio financeiro dos governos para educar uma geração de cientistas e engenheiros, que mudaram a cara do país e do mundo. Os Estados Unidos também criaram empresas de ponta, com tecnologias inventadas poucos anos atrás, como Tesla, Apple e Microsoft.
Falta no Brasil esse interesse em crescer. Não pelas pessoas, pois temos gente extremamente criativa, cientistas de alta qualidade. Mas se olharmos as patentes brasileiras com reconhecimento internacional, são proporcionalmente muito poucas, e a grande maioria da área de agropecuária. Só com um governo que incentive o desenvolvimento da pesquisa, ciência e tecnologia no país é que podemos mudar esse quadro.
Tilt: Neste período de educação dentro de casa, o modelo de ensino brasileiro tem questionado. O que acha que falta para avançarmos nesse sentido?
Marcelo Gleiser: Precisamos de uma reforma profunda para proporcionar aos brasileiros uma educação ligada ao que está acontecendo no século 21. Nossa escola parou no século 20. Precisamos formar cidadãos do mundo, com uma visão global do que está acontecendo, com respeito às diferenças, com vontade de aprender, de absorver culturas diferentes da sua.
Temos de estimular uma maleabilidade profissional, para que as pessoas consigam se locomover dentro de um mercado de trabalho em constante evolução. Antes, em geral, mantínhamos a mesma profissão pela vida toda. Agora, temos de olhar o trabalho como coisa fluida. Por isso, precisamos de uma educação que também é maleável, que prepara as pessoas com margem e habilidade para se reinventar.
Eu, por exemplo, que nunca dei muita bola para meu YouTube, com a ajuda de meus alunos o transformei em um canal para divulgar e humanizar a ciência, com uma linguagem acessível e de graça. Durante a pandemia, consegui passar dos 100 mil inscritos. E muitos outros divulgadores de ciência brasileiros, como o Átila [Iamarino], têm conseguido atingir mais pessoas pelas redes sociais. Esse é um aspecto bom da quarentena.
E a tecnologia é o grande diferencial para enfrentarmos a pandemia de covid-19 com menos mortes e com o máximo possível de normalidade. Na época da gripe espanhola, não era possível estudar e trabalhar de casa, manter contato com seus amigos e familiares de longe. Obviamente, também houve o desenvolvimento da medicina e das condições de higiene, mas o acesso à informação, à internet, é nossa grande vantagem. Precisamos usar isso da melhor maneira possível.
Tilt: Como você o futuro em relação à tecnologia? Não falando de situações extremas como sermos substituídos por robôs, mas qual limite devemos traçar?
Marcelo Gleiser: A tecnologia sempre tem lados de luz e lados de sombra. Podemos desenvolver a indústria farmacêutica para fazer remédios ou venenos; construir uma usina nuclear para produzir energia ou fazer bombas. A questão são as escolhas dos humanos, e não as tecnologias em si.
Infelizmente, parece que não somos moralmente muito mais avançados que nossos amigos que moravam nas cavernas 10 mil anos atrás. Mas temos brinquedos muito mais perigosos. Em vez de dar um golpe de clava na cabeça do outro, podemos acabar com um país inteiro com uma bomba.
Ainda mantemos relações tribais: se você não é meu amigo, é meu inimigo. O uso tóxico das redes sociais demonstra bem o tipo de animal que nós, seres humanos, somos. E, no fim das contas, por que as tecnologias têm sido desenvolvidas? Para vendê-las.
Carros autônomos tem um lado muito bacana. Tirando um humano da direção, ninguém vai abusar dos limites de velocidade, os acidentes vão diminuir. Mas e as pessoas que dependem de dirigir para sobreviver? Motoristas de táxi, ônibus, caminhões? Milhões de pessoas no Brasil ficariam sem emprego.
Aplicativos como o Uber criaram um espaço profissional para pessoas que estavam precisando de dinheiro, mas é algo temporário. E eles próprios têm interesse nisso, em se livrar dos motoristas. A preocupação é vender a tecnologia, e não criar um suporte ou requalificação para os profissionais que ficarão desempregados. Esse é o lado ruim. Uma empresa justa ou uma sociedade moral uniriam lucros e bem-estar das pessoas. Meu medo é que, como sempre na história da humanidade, a ganância passe por cima de tudo e de todos.
Tilt: Como astrônomo, qual sua opinião sobre a nova era da corrida espacial?
Marcelo Gleiser: A corrida espacial mudou de cara nos últimos anos por dois motivos principais. Primeiro, pela descentralização: ela não depende apenas do governo, temos empresas privadas como a Blue Horizon, Amazon e SpaceX com seus projetos. O espaço está sendo comercializado. Antes, era militarizado.
Quando Elon Musk diz que quer ir para Marte, é porque ele quer alavancar essa corrida e beneficiar a própria empresa. Em termos concretos, é ficção científica. Sim, é muito legal a ideia de pisarmos em outros planetas. Mas, em termos científicos, podemos aprender muito mais e com menos dinheiro com missões robóticas.
Mas um ponto positivo é uma nova geração de cientistas, interessada em astronomia, e o nascimento uma disciplina acadêmica, a astrobiologia. O estudo de vida em outros planetas era meio um tabu há 30, 40 anos, meio coisa de cientista louco. Mas agora está se desenvolvendo a passos largos.
Temos aprendido muito mais sobre a história da vida na Terra. Por exemplo, descobrimos os extremófilos, animais que existem em condições absurdas, altas pressões, sem oxigênio, sem luz, se alimentando de enxofre, e que não têm nada a ver com a gente em termos evolucionários. A vida tem capacidade de adaptação fantástica.
Tilt: Como vê a descoberta dos indícios de vida em Vênus?
Marcelo Gleiser: Será que pode haver criaturas flutuantes na atmosfera de Vênus? A notícia não me empolgou. Sou muito pé no chão em relação à vida fora da Terra. Pode existir outras explicações plausíveis para a existência de fosfina no planeta, que ainda sejam desconhecidas por nós. Crédito para os pesquisadores, que analisaram várias hipóteses, mas não ter explicação não significa que a alternativa da vida em Vênus seja a resposta.
A parte ótima é que a divulgação científica está crescendo no mundo todo, gerando mais entusiasmo pela ciência, fazendo com que jovens queiram ser astrônomos, que mulheres conquistem seus espaços. Mas, voltando ao início, é essencial que os governos dos países tenham essa cabeça de valorizar a pesquisa.
Precisamos também de uma educação mais agressiva, para combater essa corrente negacionista, anticientífica, terraplanista, antivacina, que temos visto. Mas o ministro da Educação do Brasil é um pastor, como podemos inovar? Não investir em ciência é olhar para trás, cada vez mais para o passado do que para o futuro.
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