Patricia Rocco, a especialista em pulmões que pagou para manter pesquisa
Patricia Rocco conta que sua carreira começou como uma grande "coincidência". Quando cursava a faculdade de medicina, um professor voltou do Canadá com várias ideias novas sobre pulmões e ela abraçou o tema. Trinta e cinco anos depois, ela entende que foi isso que a colocou no lugar onde está hoje: uma das maiores autoridades do Brasil nessa área, durante uma pandemia respiratória.
Professora titular e chefe do Laboratório de Investigação Pulmonar do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Rocco começou a trabalhar em abril com os primeiros estudos clínicos de covid-19, quando a doença já começava a lotar hospitais.
"Eu trabalhava numa linha de pesquisa grande sobre síndrome do desconforto respiratório agudo [SDRA] e, logo que a covid [síndrome respiratória aguda grave 2] chegou, achavam que era a mesma coisa. Começamos a ver que eram diferentes, e isso fez com que pacientes fossem ventilados melhor no Brasil", explica.
Na busca por um tratamento eficaz, suas pesquisas atuam em duas frentes:
- Estudo clínico com a droga nitazoxanida, princípio ativo de um vermífugo, em diversos hospitais brasileiros
- Estudo com uso de células mesenquimais (células-tronco)
O mais adiantado é o da nitazoxanida, que teve resultados anunciados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações em outubro, com exagerada pompa e antes de comprovada eficácia. A pesquisadora concluiu que o medicamento reduz a carga viral do novo coronavírus no tratamento precoce da doença, mas o estudo aguarda comprovação de outros cientistas.
Já o segundo estudo, acompanhado pelo médico Bruno Solano, envolve o cultivo de células-tronco no Hospital São Rafael, em Salvador (BA), com autorização da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Após cultivadas, as células são injetadas nos pacientes nas primeiras 48 horas após a entubação na UTI.
"Essas células têm atividades fundamentais contra covid", diz a médica. Ela destaca três:
- Melhorar a inflamação causada pela covid-19
- Evitar problemas bacterianos, comuns em pacientes que ficam em CTI (Centro de Terapia Intensiva)
- Ação anti-fibrogênica, importante para evitar fibrose pulmonar em pacientes que ficam muito tempo em ventilação mecânica
O estudo usou diferentes estratégias terapêuticas. Em breve, as pesquisas vão para mais uma etapa, a de testes cegos (com placebo) para verificar a sua efetividade.
A pesquisadora conta com um robusto "armamento" para sua pesquisa com células-tronco. Usa citometria de fluxo, técnica que analisa a qualidade e o tipo das células, e tomografia computadorizada, com novo software feito nos Estados Unidos. Com isso, faz análises da doença pulmonar e dá mais detalhes do grau de comprometimento —indo além de só dizer que X% do pulmão está comprometido.
Apesar de muito avançada, a pesquisa de Rocco esbarrou em problemas mundanos, como a falta de acesso a material. Como o Brasil não prioriza a produção local de insumos, os cientistas dependem da importação —num processo que pode estender uma fase da pesquisa de um dia para um mês. Durante a pandemia, todos os cientistas do mundo disputaram os mesmos insumos.
Então, em determinado momento, ela preferiu colocar dinheiro do próprio bolso para fazer a pesquisa andar mais rápido - comprou equipamentos de proteção para hospitais que estavam com falta de insumos. "Queria que fossem incluídos mais pacientes [no teste], mas os hospitais não tinham EPI, então acabei comprando", lembra.
As pesquisas que Rocco toca são divididas entre várias equipes e têm uma enorme extensão por todo o Brasil. A da nitazoxanida, por exemplo, envolve hospitais públicos (90%), hospitais particulares e hospitais militares, laboratórios de São Paulo e Rio de Janeiro e outras instituições.
Para se ter uma ideia, são tantas pessoas envolvidas que ela conta até com administradores de projetos, especialistas em legislação, bancos de dados, estatísticas e sistemas, além dos pesquisadores e do corpo médico. Um comitê externo ainda atua para avaliar a continuidade da pesquisa.
"Em todo estudo, a cada X momentos ou se um evento adverso grave ocorrer, você precisa parar tudo para entender o que está acontecendo. Esse comitê externo analisa se seu estudo pode continuar ou tem que parar", conta Rocco. Foi isso o que aconteceu, por exemplo, durante os testes da vacina de Oxford.
Para a médica, o período pré-2014 foi o "boom da ciência", quando as pesquisas receberam mais apoio. De lá para cá, o dinheiro sumiu e só voltou agora por conta da crise da covid-19.
"Vimos a importância da pesquisa no Brasil. O Ministério da Ciência desenvolveu a Rede Vírus, com todos os pesquisadores de várias áreas interagindo. Isso é muito bom para termos capacidade de desenvolver vacina, testes, diagnósticos e ficarmos independentes", aponta.
Segundo ela, a sociedade precisa entender que o trabalho de pesquisa pode demorar anos para ter resultados, mas é muito importante e traz resultados.
"O apoio da ciência não é só dos fundos ou governo, é da população. Às vezes, trabalhamos 35 anos para chegar um paciente e agradecer. Talvez não seja imediato, mas a ciência brasileira se mostrou importante em todos os momentos necessários, como na zika e agora na covid", ressalta.
Este texto faz parte da série "Made In Brazil", que descreve o trabalho de 10 cientistas de ponta brasileiros que atuaram brilhantemente no combate ao coronavírus durante a pandemia.
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