Edison Durigon, o cientista que cultiva coronavírus para que todos avancem
Edison Durigon, chefe do departamento de microbiologia do ICB (Instituto de Ciência Biomédicas) da USP (Universidade de São Paulo), é um dos principais virologistas do país e já esteve na linha de frente do combate ao zika e ao H1N1, por exemplo. Desta vez, ele e a sua equipe tiveram papel fundamental em preparar o país para lutar contra a pandemia: foram responsáveis por isolar o vírus no Brasil e cultivá-lo em laboratório.
Em janeiro, com o vírus se consolidando como uma ameaça na China, correram para preparar o laboratório. Em fevereiro, quando a doença começou a se aproximar de São Paulo, já estavam atuando e usando "armas" conhecidas, como microscopia e cultura de células, para abastecer pesquisas e testes brasileiros em dois pontos:
- Distribuição do vírus inativo para laboratórios do país usarem como controle na reação do exame PCR
- Distribuição do vírus para pesquisas em laboratório com nível 3 de biossegurança (risco individual elevado)
Isso foi primordial para melhorar a qualidade dos testes nacionais de RT-PCR, considerados "padrão ouro" para detecção da covid-19. Além disso, graça ao trabalho do grupo, a pesquisa do LNBio (Laboratório Nacional de Biociências) conseguiu ver o potencial de um remédio barato, pediátrico e com 94% de eficácia em laboratório, que depois passou a ser testado em humanos.
Isolar o vírus foi o trabalho mais importante que fizemos até agora. Conseguimos caracterizá-lo muito bem e isso alavancou pesquisas e diagnóstico, validou laboratórios e fez a fila de testes andar. Esse começo foi muito gratificante e o pontapé inicial
Durigon
Enfrentar esse tipo de desafio não é uma novidade para o cientista. Quando atuou no combate ao vírus H1N1, em 2009, Durigon foi contaminado. A gripe, que também pegou outras quatro pessoas da equipe, deixou-o "bem mal por dez dias", lembra ele, com direito a pneumonia e internação. Segundo diz, foi infectado por gente que ia ao laboratório, para colher amostras ou fazer reportagens, e não pelo material que manipulava na pesquisa.
Desta vez, a lição de casa já estava feita: ninguém, além da equipe, poderia entrar no local. Entrevistas? Só por telefone, como a concedida a Tilt graças a um encaixe em sua corrida agenda. A rotina de trabalho é extensa, muitas vezes se prolongando até a madrugada.
"Brinco que estamos 'quarentenados' no laboratório. Tomamos todos os cuidados, usamos EPIs [equipamentos de proteção individual]", conta. Aos 64 anos e lidando diretamente com o coronavírus, ele se sente seguro: "É mais fácil pegar no transporte público do que no laboratório, tenho medo de entrar no supermercado e na farmácia", aponta.
Existe toda uma logística por trás do processo de distribuir o vírus. Envolve transportar um agente contagioso de São Paulo para as mais diversas regiões e garantir que ele chegue em qualidade suficiente para a análise.
Uma parceria com os Correios, por intermédio do MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação), ajudou a recolher as amostras diretamente no laboratório para que fossem entregues no dia seguinte aos cientistas, mesmo aqueles que ficam muito distantes da capital paulista.
Quando lutava contra o vírus da zika, Durigon chegou a levar amostras em seu próprio carro para algumas localidades. Agora, diz que sem essa logística não adiantaria produzir tantos vírus. "Se tivesse que levar ao Correio e pedir um Sedex, nada disso seria viável. Para Cuiabá, levaria 12 dias. Nessa logística, sai aqui às 18h e chega às 6h lá. O vírus sai congelado no gelo seco e chega lá em forma", explica.
Apesar de decisivo, o isolamento e cultivo do vírus para enviar a outras instituições é só uma das frentes de Durigon e seus 11 colegas. O seu laboratório atua em outras áreas para investigar e combater a doença.
Uma delas, em parcerias com hospitais como Albert Einstein, Sírio-Libanês e Hospital das Clínicas, tem como foco verificar a eficácia do tratamento de infectados com plasma de pacientes recuperados. Para isso, é preciso fazer testes sorológicos com o vírus vivo para saber se aquele plasma conta de fato com anticorpos necessários.
"Nosso laboratório foi único no Brasil a fazer isso. Testamos milhares de plasmas desde abril e já estamos enviando para outros Estados", relata.
A pesquisa ainda rendeu um novo teste sorológico, feito pelo ICB com amostras colhidas de professores e alunos da USP. O laboratório também ajuda a fazer novas pesquisas de sequenciamento genético para investigar possíveis mutações do organismo.
O pesquisador também participa de um estudo que investiga como uma doença consequente ao coronavírus tem afetado crianças. Chamada de tempestade de citocina, ela é uma inflamação múltipla no corpo humano que aparece semanas depois de a criança apresentar um resfriado com teste positivo para covid. As consequências são graves e ao menos 12 casos foram relatados até o meio do ano em São Paulo, segundo Durigon.
Em um estudo mais recente, de novembro, seu laboratório passou a investigar o uso do peixe zebrafish (peixe paulistinha) para testar a segurança de vacinas contra a covid-19. O animal apresentou boa resposta imunológica nas primeiras etapas. Os pesquisadores seguirão com mais análises para validar os resultados.
Durigon está entre os pesquisadores brasileiros que mais publicaram artigos sobre a covid-19 da USP.
Ao contrário de muitos colegas, Durigon conseguiu dinheiro para as pesquisas na crise do coronavírus. O que faltou foi mão de obra capacitada. "O maior gargalo no Brasil é que a maioria dos laboratórios de pesquisa e diagnóstico não tinha nível três de proteção [nível máximo de segurança, exigido para agentes biológicos como o coronavírus]. A pesquisa ficou muito limitada e travou todo mundo", conta.
Segundo o pesquisador, não é possível capacitar uma pessoa para trabalhar nessa área rapidamente —o mesmo vale para médicos, já que muitos não sabiam, por exemplo, entubar pacientes, explica. Na luta contra o zika, isso não foi uma questão, porque o vírus transmitido por mosquito não exigia níveis altos de segurança.
Outro problema —também relatado por outros pesquisadores— foi a falta de insumos. Com o mundo inteiro atrás dos mesmos reagentes para testes e pesquisas, o professor da USP sentiu falta de produção brasileira na área. "No Brasil, as pessoas só veem que não temos estrutura depois que aconteceu. Não adianta ter dinheiro se não tem tecnologia", critica.
Há 36 anos na área de virologia da USP e com uma passagem de seis anos pelo CDC (Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos), Durigon se diz desgostoso da reputação atual da ciência. "Você está se matando e aí vem esse conceito todo de que a ciência não serve para nada, só faz balbúrdia. Vem presidente que manda tomar cloroquina e sair na rua enquanto você se mata para fazer as pessoas ficarem em casa. Tem hora que dá vontade de largar tudo", afirma.
Você se esforça e vê shopping, lojas, ponto de ônibus lotados... Dá um desânimo grande. Temos tentado focar e tirei a política do laboratório, porque ciência não tem esquerda, direita nem meio, mas infelizmente a pandemia foi usada politicamente por muita gente
Durigon
Porém, reforça ele, não é um vírus ou as pedras colocadas no caminho que o farão desistir —e diz isso no alto de sua experiência com epidemias no país: além dos citados H1N1 e zika, já atuou nas frentes contra a gripe aviária, sarampo e febre amarela.
"Toda vez que a gente consegue um teste novo ou uma droga que começa a ser usada, vem a gratificação. Não trabalhamos por dinheiro, o salário é uma droga, de funcionário público, mas estamos contribuindo para a sociedade", conta.
Este texto faz parte da série "Made In Brazil", que descreve o trabalho de 10 cientistas de ponta brasileiros que atuaram brilhantemente no combate ao coronavírus durante a pandemia.
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