Ana Paula Fernandes, a bióloga que criou diagnóstico nacional para covid-19
Sem diagnóstico, não tem tratamento ou vacina. Foi pensando nisso que Ana Paula Fernandes, professora e pesquisadora do Centro de Tecnologia em Vacinas e Diagnósticos da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), liderou a criação de um diagnóstico 100% brasileiro para o coronavírus. Ela começou a se movimentar no final de janeiro, quando o Brasil sequer tinha casos oficiais de covid-19, porque previu que este seria um desafio quando o vírus chegasse por aqui.
Como desenvolveríamos a vacina ou o tratamento sem ter a capacidade de avaliar se as pessoas estavam infectadas ou se foram curadas?
Ana Paula Fernandes, do CTVacinas
Em fevereiro, ela já coordenava a rede de diagnósticos criada pelo MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações) na própria UFMG, com a Fiocruz, o Instituto Butantan e a USP (Universidade de São Paulo), entre outras. Logo ficou claro que havia uma falha grave no nosso sistema: a dependência de insumos importados.
Desde então, ela briga para que o Brasil nacionalize as produções e monte equipes capazes de desenvolver o material que as pesquisas precisam.
Formada em biologia, especialista na biologia molecular de diagnósticos e vacinas, Ana Paula é reconhecida por suas pesquisas para combater a leishmaniose, que levou a diagnósticos, tratamentos e até vacinas —ela é uma das responsáveis pela vacina Leish-Tec, contra a leishmaniose canina.
Durante a pandemia, sua primeira vitória foi criar um diagnóstico sorológico para detecção de covid-19 totalmente nacional —outros pesquisadores brasileiros também conseguiram isso, vale dizer. Para isso, precisou coordenar e agilizar um trabalho gigantesco para circulação rápida de materiais, numa parceria que envolveu o MCTI e os Correios.
"Recebíamos amostras de hospitais do país inteiro e conseguíamos liberar em 24 horas. Era uma tarefa hercúlea. Foi um processo fantástico, que demonstrou capacidade de organização. Isso é muito importante para o país. A pandemia pode ir embora, mas o aprendizado fica", afirma.
Agora, ela trabalha para chegar a um teste brasileiro do tipo molecular, que deve elevar a nossa capacidade de testagem e diminuir a dependência externa. "Cada dado novo é uma satisfação enorme. Quando vejo um resultado saindo do forno, eu vibro. Aquilo me retroalimenta", diz.
O trabalho da pesquisadora não se limita a novas formas de diagnóstico. Ela tem atuado em muitas frentes desde que a pandemia começou:
- Solução química: estuda uma forma de inativar as partes infecciosas do coronavírus sem afetar as amostras coletadas de pacientes suspeitos de covid-19, o que dará mais segurança aos profissionais que transportam e manipulam esse material em laboratório;
- Vacinas: depois de ter ajudado no estudo do remédio nitazoxanida, usa o aprendizado obtido para o teste clínico de vacinas nacionais;
- Resposta imune: estuda o desenvolvimento da imunidade no caso da covid-19, além dos tipos de anticorpos gerados, os parâmetros na resposta do corpo e na carga viral e o mapeamento de variações do vírus.
Embora ela elogie a capacidade de organização que a ciência brasileira demonstrou neste momento, explica que a burocracia ainda atrapalha seu desenvolvimento nessas várias áreas de atuação.
Os laboratórios, diz ela, dependem muito que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) colabore e acelere a liberação de insumos neste momento de emergência sanitária. "É claro que essas questões [burocráticas] são importantes para que o gasto com dinheiro público seja correto, mas temos que ter mecanismos para que determinadas equipes e condições de emergência sejam ativadas nesses momentos", defende.
A equipe de Ana Paula Fernandes no CT Vacinas conta com especialistas de diversas áreas, especialmente microbiologistas, virologistas e cientistas moleculares. Para ela, é isso que garantiu o sucesso do trabalho agora: é gente que "trabalha há muito tempo junto".
"Como você desenvolve hoje uma vacina sem ter biologia molecular? Sem integrar conhecimentos da biologia e virologia? A pesquisa precisa ser multidisciplinar e usar ferramentas de várias áreas, não dá para ser feita de forma fragmentada ou em fatias", resume.
A pesquisadora explica que o dinheiro que conseguiu para tocar os trabalhos de agora é consequência da pressão causada pela doença, mas não é uma constante. O "obscurantismo" atual da sociedade, alimentado por questões políticas, torna tudo ainda mais complexo.
"Fazer pesquisa no Brasil ainda é muito difícil, porque não há um investimento permanente e sólido. Hoje investimos muito em covid, mas e as outras doenças? Continuam matando, e o investimento caindo consideravelmente nos últimos anos", diz. "E se você duvida da ciência, para que vai investir nela?", questiona.
Para ela, o Brasil é despreparado para lidar com informações científicas falsas, como demonstrou a propaganda em cima da cloroquina contra a covid-19, e perde uma oportunidade de ganhar dinheiro com investimento sério em tecnologia.
"Nem na crise de 2008 os Estados Unidos deixaram de investir em tecnologia. Só para diagnóstico, o déficit do Brasil é na ordem de bilhões. É um elo da cadeia produtiva que é fundamental", ressalta.
Este texto faz parte da série "Made In Brazil", que descreve o trabalho de 10 cientistas de ponta brasileiros que atuaram brilhantemente no combate ao coronavírus durante a pandemia.
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