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Made In Brazil

Os cientistas que brilharam na pandemia


César Victora, o epidemiologista que teve equipe presa e testes destruídos

Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL

Bruna Souza Cruz

De Tilt, em São Paulo

07/12/2020 04h00

Nunca antes o brasileiro se preocupou tanto com curvas e gráficos de doenças. A pandemia mostrou que, sem controle de população, dados sobre rotas e evolução de casos e outras métricas, fica muito difícil vencer um inimigo como o novo coronavírus. À frente da maior pesquisa epidemiológica sobre a covid-19 feita no Brasil, a Epicovid-19, está o médico Cesar Victora, pesquisador da UFPel (Universidade Federal de Pelotas).

Nos últimos meses, ele investigou a prevalência de anticorpos em pessoas de 133 cidades de todos os estados, usando testes sorológicos rápidos, feitos em casa, e questionários socioeconômicos. O levantamento foi dividido em várias fases. Até agosto, após a realização da quarta etapa, informações de quase 123 mil pessoas já haviam sido coletadas.

Essa base de dados mostrou a soroprevalência do novo coronavírus entre os ouvidos e pode ser comparada com as taxas de casos notificados e mortes nas cidades analisadas.

O cruzamento das informações revelou, por exemplo:

  • O ritmo de infecção ao longo dos meses (dobrou no primeiro mês)
  • A alta taxa de contaminação em cidades do rio Amazonas e, posteriormente, do Nordeste, quando ainda havia dúvidas se o vírus se espalharia em regiões tropicais ou quentes;
  • Uma taxa de infecção quatro vezes maior entre indígenas na comparação com pessoas brancas até junho deste ano;
  • Uma taxa de infeção maior entre os mais pobres, e também entre pessoas pretas e pardas
  • A queda do ritmo de contágio a partir de agosto, mas com o vírus se espalhando pelas cidades do interior

Um artigo publicado por Victora e outros pesquisadores da equipe detalhou as duas primeiras fases do levantamento, realizadas entre maio e junho. Na época, mostrou com dados epidemiológicos como a posição do Governo Federal de criticar o isolamento social contribuiu para a rápida disseminação da covid-19 nas populações mais suscetíveis.

"Os casos inicialmente aumentaram em Manaus, e as longas viagens em barcos superlotados ao longo do Amazonas favoreceram o contágio e espalharam o vírus em toda a região. Isso foi uma surpresa", lembra Victora.

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Imagem: Arte/UOL

Os participantes da Epicovid-19 são escolhidos de forma aleatória, mas com base em mapas e listas de residências do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Dez domicílios são escolhidos em cada região, onde um morador de cada casa é selecionado para receber a visita dos entrevistadores.

Caso essa pessoa não aceite participar, outro membro da família pode ser selecionado, também aleatoriamente. Se mesmo assim ninguém da residência aceitar, os pesquisadores tentam contato com um morador vizinho. Crianças menores de um ano foram excluídas do estudo.

O teste rápido coleta uma amostra de sangue dos dedos dos participantes. Com a autorização dos pacientes, os casos confirmados da doença são repassados para os órgãos municipais de vigilância. Por medida de segurança, os entrevistadores são testados um dia antes do trabalho em campo.

Os profissionais usam um kit com smartphones e tablets para achar as coordenadas geográficas de cada casa, guardar as respostas do questionário socioeconômico e gravar as entrevistas.

No início do trabalho, entrevistadores do grupo de trabalho chegaram a ser presos em 27 cidades, e os kits de testes foram destruídos em oito municípios.

Quando chegamos nas cidades, na metade de abril, as autoridades não haviam sido avisadas e isso resultou nas prisões e destruição de testes, o que foi também reforçado por uma campanha de fake news em grande parte dos municípios
César Victora

O Ministério da Saúde financiou as primeiras fases da Epicovid-19, mas interrompeu o apoio em meio às mudanças de ministros durante a pandemia. Com isso, o epidemiologista passou a ter mais poio do Conass (Conselho Nacional de Secretaria de Saúde) e Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde), o que ajudou a superar a falta de conhecimento das esferas públicas sobre a importância do estudo.

"A Pastoral da Criança também ajudou a divulgar a pesquisa por meio da Igreja Católica, e estes problemas iniciais desapareceram", disse.

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Especialista em saúde comunitária, Victora é reconhecido pela criação de políticas de saúde nas áreas de amamentação e nutrição infantil no Brasil. Fez um dos primeiros estudos de acompanhamento a longo prazo de brasileiros nascidos em uma região —os participantes foram observados em diferentes anos do nascimento até completarem 30 anos.

Já atuou em pesquisas sobre desigualdades em saúde, fatores de risco para desnutrição e sobrepeso, consequências a curto e longo prazo da amamentação e avaliação de serviços de saúde. Isso o levou a assessorar a OMS (Organização Mundial de Saúde) e o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância).

Na Epicovid-19, atuou ao lado do professor Pedro Hallal, reitor da UFPel, e dos pesquisadores Aluísio Barros, Bernardo Horta, Mariângela Silveira, Odir Dellagostin, Luís Paulo Ruas, Fernando Hartwig, Ana Menezes e Fernando Barros.

O trabalho recebeu financiamento do Ministério da Saúde nas primeiras fases, da iniciativa Todos pela Saúde, do Itaú Unibanco, na quarta fase e da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de S. Paulo) na quinta e sexta.

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Com quase 45 anos de carreira, o pesquisador pôde acompanhar diferentes momentos da ciência no Brasil e é experiente o suficiente para dizer que as dificuldades enfrentadas agora são fora da curva. Segundo ele, vivemos "tempos muitos tristes".

"Governos populistas e autoritários, em vários países, resolveram fazer do negacionismo uma estratégia política que atrai eleitores desinformados", afirma.

"Isso ressalta cada vez mais a importância de educação científica nas escolas e através da mídia."

Este texto faz parte da série "Made In Brazil", que descreve o trabalho de 10 cientistas de ponta brasileiros que atuaram brilhantemente no combate ao coronavírus durante a pandemia.

Tilt, o canal de ciência e tecnologia do UOL, acredita no trabalho dos cientistas brasileiros, que conseguem fazer pesquisa de ponta mesmo com falta de recursos, estrutura e apoio. Para valorizá-los e conseguir que recebam o apoio que merecem, trazemos aqui uma curadoria dos nomes "made in Brazil" que impressionaram a nós e à comunidade científica internacional.