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Que contradição, Apple! Novo chip dificulta reparo e prejudica o ambiente

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Imagem: Reprodução

Lucas Carvalho

De Tilt, em São Paulo

14/12/2020 04h00

Sem tempo, irmão

  • M1 unifica principais componentes do processador em um só chip
  • Design torna desempenho mais eficiente, mas dificulta reparos e incentiva descarte
  • Uso de solda também dificulta o trabalho da reciclagem de lixo eletrônico

O último evento de lançamento da Apple em 2020 não foi para anunciar um novo iPhone, iPad nem mesmo os fones de ouvido AirPods Max. A última apresentação da empresa no ano foi para revelar um processador. Chamado de M1, o chip promete colocar os computadores da Apple acima da concorrência em desempenho e economia de energia. Mas esse "milagre" vem ao custo de reparos mais difíceis e de um considerável impacto ambiental.

Os Macbooks com chip M1 chegaram ao Brasil na semana passada com preços de R$ 8.699 (Mac Mini) até R$ 23.899 (Macbook Pro de 13 polegadas)

O processador usa uma arquitetura semelhante à de smartphones, o design SoC ("System on a Chip", ou "sistema em um chip", em tradução livre). Isto significa que todos os principais componentes que farão o computador pensar e responder mais rapidamente ficam soldados e unificados em apenas um chip.

O design rendeu críticas por parte de associações de defesa do consumidor nos Estados Unidos. Na prática, ele torna o reparo e o reaproveitamento das peças mais difícil, levando mais pessoas a jogarem seus computadores fora, acumulando lixo eletrônico na natureza.

"Temos observado a Apple e outras empresas continuarem a projetar produtos para serem cada vez menos reparáveis —e isso não é exceção", diz Gay Gordon-Byrne, diretora-executiva da coalizão Digital Right to Repair (Direito Digital ao Reparo), em entrevista a Tilt.

A associação norte-americana, também chamada de Repair Association, briga para que a legislação dos Estados Unidos obrigue empresas de tecnologia a facilitar o reparo e a reutilização de produtos como computadores e smartphones sem que isso viole a garantia dos aparelhos.

Ainda de acordo com Gordon-Byrne, facilitar o reparo de produtos eletrônicos também ajuda no processo de reciclagem, já que facilita a desmontagem das peças. Mas a iniciativa da Apple estaria na contramão deste movimento.

"Além do uso crescente de SoC e solda em geral, esses itens caros estão indo parar no lixo no momento em que a garantia de um ano termina. O valor dos componentes usados despenca porque o produto em si vira um tijolo", argumenta Gordon-Byrne. "A Apple, é claro, afirma ser uma heroína do ambientalismo enquanto promove uma sociedade totalmente descartável."

Por dentro do chip

No M1, assim como os processadores de smartphones, todos os principais componentes que formam o "cérebro" do computador ficam juntos em um pequeno chip. Isso faz com que a máquina realize tarefas mais rapidamente e também economize energia, já que as peças conseguem se comunicar mais facilmente.

Além da CPU (unidade de processamento de dados) e da GPU (unidade de processamento de gráficos), o M1 abriga no mesmo chip a memória RAM da máquina, responsável por armazenar informações de curto prazo e por garantir que várias tarefas sejam executadas ao mesmo tempo.

Em computadores com Windows, ou mesmo os MacBooks vendidos hoje pela Apple com processadores Intel, a memória RAM fica separada do processador. Isso prejudica um pouco o desempenho, mas facilita reparos caso haja algum defeito em uma das peças.

Quando os componentes ficam soldados num só chip, como ocorre no M1, é impossível remover ou trocar um só individualmente. É preciso substituir todo o conjunto em caso de problema em uma das peças, mesmo que as outras estejam em perfeito estado.

Se você levar o seu MacBook para o reparo a uma assistência técnica não oficial da Apple, é provável que esse conjunto que precisou ser substituído vá parar no lixo, já que não pode ser reaproveitado em outras máquinas.

Tilt conversou com profissionais de três assistências técnicas especializadas em produtos da Apple em São Paulo que preferem não se identificar. Eles confirmam que as peças da Apple raramente podem ser reaproveitadas e a maioria vira lixo eletrônico em caso de defeito.

"Dependendo do defeito, não tem o que fazer. Você perde a máquina inteira por um problema na memória RAM", disse um dos profissionais ouvidos pela reportagem. "O jeito é jogar fora e comprar outro."

Ou seja, a arquitetura do novo processador, que dificulta o reparo de defeitos simples, também incentiva o descarte de equipamentos novos, contribuindo para o acúmulo de lixo eletrônico na natureza.

Jeitinho Apple

Em novembro, após o lançamento dos novos computadores com o processador M1, a Apple aumentou o preço do conserto dos MacBooks no Brasil em até 49%. Procurada, a empresa não confirmou ou negou que o aumento esteja relacionado à dificuldade de reparar computadores com o novo chip.

O reajuste de preços refere-se ao reparo na bateria, caso o computador esteja fora da garantia inicial e não esteja coberto pelo AppleCare, a garantia estendida vendida pela empresa.

A maior diferença está no preço do conserto do MacBook Pro de 13 polegadas com tela Retina, que foi de R$ 1.099 para R$ 1.639. O aparelho é um dos novos Macs que ganharam o processador M1.

Além disso, a Apple fornece aos usuários um serviço próprio de descarte e reciclagem de lixo eletrônico. A empresa, em si, não faz a reciclagem no Brasil, mas leva os aparelhos para uma empresa ou cooperativa parceira. O usuário pode levar seu equipamento para descarte em qualquer loja ou agendar a retirada por email ou telefone.

"Quando seu aparelho vai para reciclagem, ela é feita por um dos nossos parceiros de maneira ambientalmente responsável", diz a empresa em sua página de suporte. Mas esse processo busca reaproveitar a matéria-prima dos componentes, e não peças inteiras.

A Apple não vai reaproveitar o processador de um MacBook antigo em um novo, mas pode contar com a ajuda de parceiros para extrair cobre, ferro e ouro de algumas peças —material que pode ser usado na fabricação de novos equipamentos.

Nos Estados Unidos, a empresa tem um centro próprio de reaproveitamento com robôs preparados para desmontar os aparelhos e extrair os metais. Um deles é chamado de Daisy e, segundo a companhia, consegue extrair materiais de 15 modelos diferentes de iPhone em uma velocidade de 200 aparelhos por hora.

Apesar disso, equipes especializadas em reciclagem de lixo eletrônico confirmaram a Tilt que o uso de solda nesses aparelhos, como é o caso dos novos MacBooks com o processador M1, dificulta o reaproveitamento desses produtos, principalmente quando você não tem um robô como o Daisy.

"Soldas, assim como a cola, são extremamente difíceis de manusear e quase impossíveis de retirar completamente", diz André Silveira, gerente de negócios do Sinctronics, empresa que fornece reciclagem de lixo eletrônico para corporações.

"O processo de separação dos materiais das placas de circuito, por exemplo, que são fixados com solda, é tão complexo que há poucas empresas no mundo que fazem e, no Brasil ainda não temos essa tecnologia implementada", diz Silveira em entrevista a Tilt.

Sem falar especificamente da Apple, o executivo explica que o design utilizado por processadores como o M1 não torna a reciclagem impossível, mas bem mais difícil. Tudo depende de qual centro vai fazer a reciclagem. O resultado também pode ser de menor qualidade, reduzindo o interesse de empresas que usam materiais reciclados.

"Não encontramos ainda um equipamento que não pudesse ser pelo menos reciclado. O que pode acontecer é um produto impossibilitar a desmontagem por alguma razão, ou a separação de algumas partes, e ter que ser destruído inteiro, ou com materiais misturados", explica Silveira.

Segundo o executivo, a matéria-prima mais "pura" (isto é, sem metais misturados) que sai de um processo de reciclagem pode ser aproveitada por outras empresas na fabricação de novos eletrônicos. É o que a Apple diz fazer na fabricação dos seus novos MacBooks com processador M1.

A reciclagem da Apple

A Apple diz levar a responsabilidade com o meio ambiente muito a sério. A empresa afirma que é, hoje, 100% neutra em emissão de carbono e tem o plano público de tornar toda a sua linha de produção de dispositivos igualmente neutra até 2030.

Essa neutralidade significa que a empresa compra e investe em fontes de energia renovável na mesma medida que consome energia de fontes não-renováveis, para que uma "compense" a outra.

Além disso, a empresa diz usar uma liga de alumínio 100% reciclada na construção do MacBook Air, Mac mini, iPad e do Apple Watch. A Apple ainda se compromete a usar materiais reciclados em todos os seus produtos nos próximos anos, mas não estabelece um prazo para isso.

Apesar de todo esse comprometimento, a arquitetura do processador M1 caminha na direção oposta das principais tendências ambientalistas do momento. É o que diz Silveira, da Sinctronics, que defende o princípio do "design for environment" (design para o ambiente, em tradução livre).

O conceito, diz, é para diminuir a quantidade de materiais na fabricação de um produto. "Ou, pelo menos, melhorar as formas de fixação das partes para termos menos materiais, menos parafusos e menos cola", diz o executivo.

Segundo ele, "o movimento atual é diminuir a quantidade de etiquetas adesivas do processo de montagem" e não usar mais solda, como o novo processador da Apple utiliza.

Procurada, a Apple não se manifestou sobre as críticas levantadas ao design do processador M1 e seu impacto ambiental até o fechamento desta reportagem.