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O que fones de ouvido brigando com cabelo afro dizem sobre diversidade

O cantor e produtor de conteúdo Guil Anacleto sofre com fones de ouvido brigando com seu cabelo toda vez que tem de gravar músicas - Arquivo Pessoal
O cantor e produtor de conteúdo Guil Anacleto sofre com fones de ouvido brigando com seu cabelo toda vez que tem de gravar músicas Imagem: Arquivo Pessoal

Colaboração para Tilt

17/12/2020 04h00Atualizada em 15/04/2021 16h00

"Precisamos falar sobre fones de ouvido que não se encaixam em black power e quebram." Era para soar como brincadeira, mas a provocação, feita no início de dezembro, pela produtora de conteúdo e colunista de Splash Andreza Delgado, 24, desencadeou duas coisas. Por um lado, provocou uma onda de ataques virtuais em sua conta no Twitter. Por outro, gerou uma reflexão sobre para quais cabeças são desenhados alguns acessórios de tecnologia.

Para os que se irritaram com a postagem, a solução para o problema apontado por Andreza era bastante simples: cortar o cabelo ou, mais uma vez, trocar o modelo do acessório.

"Eu trampo fazendo live. Para mim, o headphone é muito melhor", conta a produtora de conteúdo, que também é moderadora de jogos de streaming. O problema, diz ela, não era a qualidade das marcas testadas. O modelo remendado exibido no post era o terceiro fone de ouvido no qual investiu mais de R$ 100 e mesmo assim não se ajustava à cabeça da dona.

Quando fiz o post, achei que fosse só uma brincadeira. Depois, fui refletindo e vi que o problema não era comigo. É igual à touca de natação para pessoas negras. Tiveram que fazer uma adaptação. Isso mostra que só pessoas brancas são lidas como universais. A gente toca em uma ferida
Andreza Delgado, sobre os ataques virtuais que recebeu após o post criticando fones de ouvido

Na internet, ela também descobriu que não era a única a passar pelo aperto com os fones. O cantor e produtor de conteúdo Guil Anacleto, 27, convive com desconforto semelhante em sua carreira musical. "Na hora de gravar minhas músicas, não tenho um headphone adequado para o volume do meu cabelo e acabo optando pelo intra-auricular [que envolve a orelha]", diz.

Anacleto também usa um headset —um fone com microfone, usado para conversa em vídeo ou transmissões ao vivo— na hora de gravar um quadro para as redes sociais e precisa prender os cabelos para se adequar ao acessório.

Embora faça parte de uma fatia da população brasileira que movimenta R$ 1,7 trilhão em renda própria, segundo o Instituto Locomotiva, Anacleto sente que o consumidor negro ainda não é visto como passível de atenção: "Se há consumidores com black power, é preciso que existam produtos que supram tais necessidades: bonés, tiaras, até mesmo elásticos de máscaras que prendam na parte superior da cabeça".

O que (não) dizem os fabricantes

A reportagem entrou em contato com três marcas fabricantes de fones de ouvido para diferentes padrões de consumo e perguntou quais são os parâmetros levados em conta na produção do equipamento. Sony, Sennheiser e Unixtron não responderam, justificando que não conseguiriam entrar em contato com a equipe de produção em tempo hábil para enviar um posicionamento.

O usuário "universal"

"Quando um produto é desenvolvido, naturalmente ele tem que ser testado em usuários", explica Gabriel dos Santos Pereira, especialista de design para melhorar a experiência de usuário.

Para Pereira, o baixo índice de profissionais negros no mercado brasileiro de tecnologia e inovação abre pouca possibilidade para produtos serem feitos para contemplar consumidores que fujam ao modelo de usuário "universal" do mercado.

"Só quando a gente escuta o usuário e temos empatia com a jornada dele é que sabemos que um headphone tem que ter uma espessura maior, porque o diâmetro não pode englobar só quem tem cabelo liso", explica.

Temos um grande problema, porque a experiência de usuário, na maioria das vezes, é pensada de uma perspectiva branca
Gabriel dos Santos Pereira, especialista de design de experiência de usuário

Para exemplificar os tetos de vidro no mercado de inovação, Pereira cita casos como sistemas de reconhecimento facial falhos para pessoas negras. "Nem sempre você precisa criar um aplicativo para resolver o problema. É só calçar os sapatos do usuário", alerta.

Foi o que fez Mauricio Delfino, fundador da marca de toucas de banho para cabelo afro "Da Minha Cor". A ideia, segundo ele, era democratizar o acesso de pessoas negras a esportes como a natação.

"Quando se é negro e se propõe a vender produtos voltados para a população negra, as dificuldades triplicam. O trabalho todo fica pela divulgação online, já que as grandes marcas dizem não comprar meu produto porque pensam que pretos não nadam", explica o empresário, que nasceu no município de Carapicuíba, em São Paulo, e hoje tem clientela em Moçambique, Portugal, França e Estados Unidos.