Como extremistas usaram plataformas web para articular invasão nos EUA
Sem tempo, irmão
- Protesto no Congresso foi orquestrado após postagem de Donald Trump em dezembro
- Apoiadores do presidente usaram redes sociais alternativas como Parler e Gab, além de fóruns
- Plataforma de livestreaming DLive foi usada por pessoas dentro do Capitólio
- Especialistas afirmam que ato poderia ser evitado pelas autoridades
Um fato histórico marcou a sessão de contagem de votos do Colégio Eleitoral dos Estados Unidos, que daria a vitória a Joe Biden. Apoiadores do presidente Donald Trump —que acusam, sem provas, que a eleição foi fraudada— invadiram o Congresso norte-americano momentos depois do atual presidente reafirmar em público que não aceitaria o resultado do pleito.
Mas a invasão, que acabou em mortes e prisões, não foi algo espontâneo. Especialistas em web e redes sociais apontam que os responsáveis pelo ato se organizaramhá algum tempo não só nas redes mais conhecidas, como Facebook, Twitter e Instagram, como em alternativas como o Parler —atualmente fora do ar por decisão do serviço de nuvem da Amazon— blogs e até mesmo o DLive, um site de livestreaming.
Segundo o brasileiro David Nemer, especialista em antropologia da tecnologia e professor na Universidade da Virgínia, mensagens convocando o ato começaram a circular nas redes após uma postagem feita pelo presidente Donald Trump, no dia 19 de dezembro, na qual o republicano afirmou que ocorreria um protesto no dia 6 de janeiro, dizendo que "vai ser selvagem".
Após essa publicação, extremistas teriam criado o site wildprotest.com e enviaram mensagens via SMS para que as pessoas comparecessem. Além disso, postagens no fórum MyMilitia.com convocavam os apoiadores do presidente para o ato.
"Isso foi planejado abertamente. Esses fóruns são sites públicos, qualquer pessoa pode fazer parte, qualquer um pode averiguar", diz o pesquisador.
Uma das mensagens compartilhadas com Tilt por Nemer convocava apoiadores para o protesto, mas dizia que a ocupação seria apenas pelo lado de fora. "Tivemos a ideia de ocupar o lado de fora do Capitólio em 6 de janeiro, e Trump endossou a ideia apenas três dias depois. Acabei de lançar www.wildprotest.com para que você possa obter todos os detalhes", diz o SMS.
Em uma postagem em um dos blogs usados por apoiadores do presidente americano, uma conta diz: "Já é aparente que, literalmente, milhões de americanos estão prestes a ativar seu dever de segunda emenda (que dá garantia de legítima defesa à população e policiais) para derrotar a tirania e salvar a república, mesmo que isso signifique possivelmente morrer no processo".
Além disso, Nemer recorda que Trump fez uma postagem no dia 5 de janeiro convocando apoiadores a comparecerem a Washington para um evento no qual ele estaria presente. "Tudo foi feito às claras, daria para ter evitado. Até porque a polícia sabia que esses protestos estavam sendo organizados, e a própria polícia da capital recusou ajuda federal. Agora estão nessa crise de responsabilidade e sofrendo questionamento sobre o porquê de não haver segurança suficiente", completa.
A ativista e pesquisadora de governança digital na Universidade de Harvard Yasodara Córdova segue a mesma linha. Para ela, grupos como os que invadiram o Congresso americano vêm se organizando desde a eleição de Trump e vários pesquisadores já haviam alertado as autoridades sobre o perigo de ataques como o ocorrido.
Para ela, a responsabilidade das redes sociais é muito grande na formação e radicalização desses grupos. Ela cita o caso de como as redes agem junto a grupos terroristas como o Estado Islâmico, com muitas contas sendo apagadas em uma ação coordenada.
Esse tipo de terrorismo tem uma ação energética por parte das redes, mas grupos de supremacia branca ou que acreditam em teorias da conspiração costumam ter leniência das redes sociais nos últimos cinco anos
Yasodara Córdova
Redes alternativas
Mas desde o início da pandemia de covid-19, redes sociais como Twitter, Instagram e Facebook vinham acompanhando mais de perto ações do presidente americano, chegando, inclusive, a apagar postagens de Trump.
Assim, surgiram redes sociais alternativas que atraíram grupos de extrema-direita como o Parler ou o Gab. E essas redes atraíram pessoas adeptas aos discursos de ódio, já que se dizem plataformas "sem censura".
Segundo David Nemer, essas plataformas acabam virando um potencializador do discurso radical, já que estão "fora do olho público". Já nas redes mais conhecidas do público, como Twitter ou Instagram, acabam se ajustando por causa das pessoas, que encontram postagens que não concordam, começam a debater e criticar.
Nessas plataformas mais escondidas, onde só se há uma forma de pensamento e estão as margens do olho público, você cria uma câmara de eco sinistro em que as pessoas vão se retroalimentando do mesmo tipo de discurso e a tendência é sempre se radicalizar
David Nemer
Mas uma das plataformas alternativas que mais se destacaram durante a invasão ao Capitólio foi a DLive, usada para transmissões ao vivo. Após Facebook e Twitter começarem a retirar do ar as lives sobre a invasão, usuários começaram a adotar a plataforma para divulgar o ato a favor do presidente Trump.
Segundo o site da revista norte-americana "Wired", canais com centenas de espectadores foram ao ar na quarta-feira (6) e mais de 140 mil espectadores assistiram streams sobre os eventos no Capitólio, muitos encorajando a multidão a invadir o local.
Líderes nacionalistas brancos contribuíram para o crescimento do DLive e personalidades de extrema direita migraram para a plataforma após restrições no YouTube. Segundo a "Wired", dezenas de extremistas e teóricos da conspiração circulam no site, muitos deles com o selo de "parceiro verificado". A revista "Time" afirmou que oito dos dez maiores beneficiados por doações na plataforma são extremistas ou teóricos da conspiração.
"O DLive é mais uma plataforma que está tentando se consolidar nesse espaço onde você teoricamente pode falar qualquer coisa. O argumento da extrema-direita é de que tirar o perfil dos incentivadores da violência de outras redes é uma atitude de censura, mas não é. A censura ocorre quando você não pode se opor politicamente a alguma ideologia, e não é o que estamos vendo acontecer", afirmou Córdova.
De acordo com a pesquisadora, apesar das recentes atitudes mais firmes das plataformas contra Donald Trump, elas precisam atuar mais e não tolerar discursos de ódio.
"A gente tem que lembrar que esses grupos, muitas vezes, são financiados para praticar a violência. As pessoas que acreditam, por exemplo, em teorias de que mulheres devem ser submissas, podem querer praticar um 'estupro corretivo' em uma lésbica, acreditando que isso vai salvá-la. Tem que começar a moderar esses discursos para que esse tipo de ideia não seja propagada apenas como posição política", afirmou.
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