TrateCov: sistema do governo que sugere cloroquina não explica uso de dados
O Ministério da Saúde começou a usar a plataforma TrateCov desde a semana passada para ajudar profissionais de saúde a coletar sintomas e sinais de pacientes de covid-19. Mas especialistas apontam que o sistema sugere receitar remédios para tratamento precoce, algo refutado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Além disso, suas políticas de uso e privacidade de dados são pouco claras e sem respaldo na LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados).
O TrateCov é um formulário voltado para profissionais de saúde, mas que ficou acessível para qualquer pessoa por pelo menos três dias —durante a publicação deste texto, o acesso a ela esteve instável.
Após ter sido descoberta por jornalistas e especialistas da área da saúde no Twitter, a plataforma serviu de teste para várias pessoas fazerem simulações com perfis diferentes de pacientes fictícios, e o resultado muitas vezes sugeriu o tratamento precoce com remédios sem eficácia comprovada —como cloroquina, ivermectina e azitromicina.
Apesar disso, o Ministério da Saúde, em nota, comenta que o médico tem total autonomia para prescrever o que for necessário conforme as condições do paciente.
Segundo os testes informais realizados pelo público, o profissional da saúde que usar o TrateCov receberá como indicação para tratamento precoce os seguintes medicamentos: ivermectina, cloroquina, hidroxicloroquina, azitromicina, sulfato de zinco, doxiciclina, zinco e dexametasona. As diferenças nos resultados das simulações estavam na alteração na dosagem, que varia conforme o peso do paciente indicado no formulário.
Um dos primeiros a examinar a plataforma foi o jornalista de dados Rodrigo Menegat. Além de fazer uma cópia do código da plataforma, ele reparou que havia oito medicamentos no código fonte para o tal tratamento precoce —algo que, como já mencionamos, não existe para covid-19.
Já o desenvolvedor Lucio Maciel decifrou o sistema de pontuação do TrateCov. Basicamente, dependendo das condições clínicas citadas no formulário, o paciente pode obter uma soma em que há a sugestão do uso de medicamentos.
Ao analisar o código, Maciel concluiu que se uma pessoa saudável, apresentando dois sintomas quaisquer (como dor de cabeça e cansaço, por exemplo), já é sugerido o tratamento precoce.
Durante um teste da plataforma, a reportagem simulou o preenchimento de um formulário clínico de um homem de 36 anos, cujos principais sintomas eram fadiga e congestão nasal. Não havia sinais graves apontados no formulário, como falta de ar ou saturação de oxigênio menor que 92%.
A pontuação obtida foi de seis pontos. Segundo a plataforma, a recomendação neste caso seria iniciar tratamento precoce de covid-19 e solicitar um teste RT-PCR para pacientes com cinco dias ou menos de início dos sintomas.
Hiago Kin, presidente da Associação Brasileira de Segurança Cibernética, acredita que seria preciso mais testes para comprovar se o sistema está condicionado a indicar apenas tratamento precoce contra a covid.
"Ele [o programador Rodrigo Menegat] exibiu o código fonte da página já pronta com o resultado, e não do algoritmo. É uma teoria sem prática estatística comprovada, embora o TrateCov não deixe claro suas lógicas", argumenta.
Consultado por Tilt, o Ministério da Saúde informou por nota que o TrateCov sugere "opções terapêuticas disponíveis na literatura científica" e "oferece total autonomia para que o profissional médico decida o melhor tratamento para o paciente". Sobre os medicamentos citados, o ministério diz que a lista "pode sofrer alterações de acordo com os estudos científicos em andamento".
Quem trata os dados?
O TrateCov está hospedado em um sistema chamado Redcap (Research Electronic Data Capture). Desenvolvido pela Universidade Vanderbilt, de Nashville (Tennessee), nos EUA, a plataforma é bastante usada dentro da comunidade acadêmica.
A plataforma diz cumprir regras de proteção de dados de diferentes países, mas que cabe ao desenvolvedor de cada empresa ou entidade que usa o sistema informar sobre o tratamento de dados das pessoas envolvidas.
Ao mexer na plataforma, não havia nenhuma menção sobre como os dados seriam tratados —se seria apenas para ajudar no diagnóstico ou se seriam armazenados. O TrateCov pede informações como nome, data de nascimento, telefone, entre outras informações (importante ressaltar que não havia pedido de CPF ou RG).
Segundo Kin, faltou transparência sobre a política de privacidade da plataforma. "O governo e a aplicação agem como se fossem titulares dos dados, e não controladores, que necessitam pedir o consentimento ao explicar a finalidade de uso", diz. Para ele, apesar de a LGPD já estar vigente no país e o governo ser responsável por fiscalizá-la, "o governo não dá o exemplo".
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