Todos contra o iFood: guerra de apps de delivery por VIPs vai parar no Cade
Sem tempo, irmão
- Com o apoio de rivais e de restaurantes, a Rappi abriu um processo contra o iFood no Cade
- Os apps acusam o iFood de monopolizar o mercado com excesso de contratos exclusivos
- No fogo cruzado entre os apps, restaurantes têm elogios, críticas e até relatos de ameaças
O mercado de apps de delivery bombou na pandemia de covid-19, mas não de maneira igual para todos —o que levou a uma guerra entre grandes e pequenos. No centro da disputa estão contratos de exclusividade firmados entre os aplicativos e restaurantes parceiros, estratégia usada pelo iFood para se manter no trono de líder no mercado, mas que, segundo concorrentes e ex-parceiros, está atrapalhando a competição no setor.
Rappi e Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes) entraram com ações separadas no Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) contra o iFood. O Uber Eats também entrou na briga, entregando uma manifestação de apoio a elas com mais críticas ao aplicativo líder. Tilt apurou que a ANR (Associação Nacional de Restaurantes) e SindRio (Sindicato de Bares e Restaurantes do Rio de Janeiro) também pretendem ingressar com ações, pelos mesmos motivos.
A bronca é porque o iFood abusa da sua posição de liderança e firma contratos de exclusividade com um número excessivo de estabelecimentos. Por conta disso, outros apps não conseguem crescer, e ficam limitados a um número pequeno de parceiros. Pelo lado dos restaurantes, a reclamação é pelas multas exageradas em caso de rompimento do contrato e promessas não entregues.
Segundo a Rappi, dois casos inspiraram o processo:
- Unilever x Nestlé: em 2018, o Cade condenou a Unilever, dona da marca Kibon, a pagar R$ 29,4 milhões à Nestlé por impedir a atuação de concorrentes com contratos de exclusividade em pontos de venda de sorvetes.
- Ambev x Kaiser: em 2015, o Cade firmou um termo de compromisso com a Ambev para limitar em 8% a quantidade de pontos de venda de cerveja com contratos de exclusividade.
Procurado, o iFood só quis se manifestar sobre o processo no Cade por meio de nota. Diz que está "à disposição da autoridade regulatória, como sempre fez, para esclarecer quaisquer aspectos sobre as suas atividades", mas está "convicto de que o mercado é saudável e que as suas políticas comerciais são benéficas a todas as partes do setor de alimentação, sobretudo restaurantes e consumidores."
A Rappi, claro, não é contra contratos de exclusividade —afinal, também tem os seus. Mas quer que o Cade imponha limites à prática para que um só app não monopolize o mercado. "A exclusividade é importante, no Brasil e no mundo", diz Sergio Saraiva, presidente da Rappi, em entrevista a Tilt. "Mas as exclusividades não deveriam ser tão representativas a ponto de bloquear o usuário e o crescimento de outros players no setor."
A Uber Eats diz em nota que "contratos de exclusividade devem trazer vantagens para os restaurantes parceiros e não ser usados como uma ferramenta para manter esses estabelecimentos reféns de uma única plataforma".
Já Paulo Solmucci, presidente executivo da Abrasel, defende que "nenhum aplicativo deveria ter exclusividade". "É uma barreira à concorrência e muito nocivo ao setor de bares e restaurantes", afirma.
Questionado sobre o andamento do processo e a previsão de conclusão, o Cade não respondeu até o fechamento da reportagem.
Fogo cruzado
Ouvidos por Tilt, empresários do setor de restaurantes no meio do fogo cruzado entre os apps de delivery relatam cenários bem diferentes. Há os satisfeitos com a exclusividade com o iFood; os que mudaram de parceiro após uma série de problemas; e os que ficaram tão traumatizados que decidiram entrar em todos os apps, sem exclusividade.
Guilherme Nóbrega, sócio da rede de pizzarias Camelo, em São Paulo, já foi VIP do iFood, mas trocou a empresa pela promessa da Rappi de receber relatórios personalizados de inteligência. "Nós éramos só mais um restaurante lá dentro, mesmo sendo exclusivos. A única vantagem que tínhamos era um desconto na taxa. Não tínhamos um atendimento diferenciado, visibilidade de marca, nada", diz.
O relato é parecido com outros que aparecem no site Reclame Aqui e foram anexados ao processo no Cade. Um diz que sua pizzaria, com 4,7 estrelas, aparece atrás de um rival com nota 4,3 mesmo com exclusividade. Outro conta que não recebe a atenção prevista no contrato "há nove meses". Há ainda quem reclame de queda no faturamento e no número de pedidos.
Daniel Roberti, dono de um restaurante em Belo Horizonte (MG) que já esteve nessa lista VIP do iFood, diz que os contratos não são de exclusividade, mas sim de "escravidão". "O iFood já atrasou pagamentos, me fez ameaças de processo e beneficiou meus concorrentes, mesmo eu sendo exclusivo", afirma.
A gota d'água para Roberti foi quando ele abriu uma "dark kitchen" —cozinha só para atender as entregas— para uma parceria com o Uber Eats. Segundo afirma, o iFood ficou sabendo e o ameaçou de processo por quebra de contrato. "Se eu quiser abrir uma loja de açaí num bairro totalmente diferente e colocar no Uber Eats, eu não posso? Eles me falaram que não. Então não é uma exclusividade da loja, é da minha expertise."
"Crítica sempre tem"
Tilt levou algumas dessas reclamações para Diego Barreto, vice-presidente de estratégia e financeiro do iFood, numa entrevista realizada antes que o Cade tornasse público o processo movido por Rappi e Abrasel.
O executivo se defendeu dizendo que é preciso verificar caso a caso, para saber se o contrato de exclusividade previa o benefício que os empresários reclamam que não tiveram. "Sempre tem feedback negativo, em qualquer coisa. Se fosse sempre positivo a vida seria mais fácil. Mas é tudo regulado por contrato. Via de regra, tudo que você, como contraparte do contrato, entende que precisa ser atendido, e eu naturalmente vou atender, tem que estar no contrato", falou.
Para parte dos empresários esses contratos têm funcionado bem, há anos. É o caso de Marcelo Vieira, responsável pela área de novos negócios na sucursal brasileira da Applebee's. Além de app próprio, eles são exclusivos do iFood, porque, dizem, é o mais usado. "Todas as nossas decisões são baseadas no que o cliente final exige. Se o meu cliente amanhã falar que quer encontrar o Applebee's pela Rappi e pelo Uber Eats, vamos sentar com o iFood e discutir", diz.
"Trabalhei com Uber Eats e Rappi, mas se entravam 100 pedidos pelo iFood, entravam dois do Uber Eats e dois da Rappi. Não tinha sentido ficar nos três. E o iFood tem um bom suporte e pagamento", conta Aldo Zerbinatti Neto, sócio da hamburgueria paulista Osnir.
Zerbinatti fechou as portas para outros apps quando abriu uma segunda loja, e o iFood entrou como investidor no projeto em troca da exclusividade. "Nunca teve a ver com concorrentes. A origem [das exclusividade] é a ausência de crédito no mercado brasileiro para pequenos e médios restaurantes", diz Barreto, vice-presidente do iFood.
Maikon Rangel, dono da lanchonete Just Burger, uma das mais badaladas da zona leste de São Paulo, também se diz satisfeito com o iFood. "Na época em que eles me ofereceram exclusividade, por que os outros aplicativos não fizeram o mesmo? Eu saí da plataforma deles e nunca fui nem questionado. Agora que eu fiquei grande, eles sondam direto. Mas agora nós temos uma história com o iFood, eu não vou trocar."
Dados unificados
Em paralelo ao processo, a Abrasel trabalha em uma proposta para dar mais dinamismo ao mercado e tentar resolver as discrepâncias: o "open delivery".
Seria um acordo entre os apps para criar ferramentas que facilitem a vida dos restaurantes que vendem em várias plataformas ao mesmo tempo.
"Você vai mudar o preço de um produto, tem que entrar em três, quatro plataformas para atualizar. Os pedidos chegam sem organização, não tem como gerir quem chegou primeiro", diz Paulo Solmucci, presidente da entidade. "Queremos estabelecer um código aberto, padronizado, acessível a todos os aplicativos. Com isso, você garante uma concorrência mais ampla."
Com isso, mesmo que o iFood não embarque na iniciativa, os outros apps conseguem agilidade para tentar fazer frente ao gigante. Não resolve o problema dos contratos exclusivos, Solmucci admite, mas "já ajuda".
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