BBB distópico: vigilância na China faz vizinhos vigiarem uns aos outros
Sem tempo, irmão
- Sharp Eyes quer montar uma rede nacional de vigilância total na China
- Programa estimula cidadãos a vigiarem uns aos outros
- Previsão era de que espaços públicos estivessem 100% cobertos até 2020
- Especialistas dizem que iniciativa põe liberdade civil e privacidade em risco
- Brasil já tem cidades que fazem uso de tecnologias de reconhecimento facial
Câmeras por todos os lados, idas e vindas monitoradas. Pensou no Big Brother Brasil? Não, é o Sharp Eyes (olhos afiados, em tradução livre), projeto chinês de vigilância de áreas públicas via rede tecnologias de reconhecimento facial, espalhadas por diversos pontos da China.
As câmeras são instaladas em ruas, estradas, praças, parques, centros comerciais, estações de transporte, entradas de escolas, shoppings e hospitais. As imagens captadas são cruzadas com um imenso banco de dados. A partir disso, podem ser acessadas por órgãos do governo, como departamentos de polícia para fins de segurança pública.
Lançado em 2015 e inicialmente focado em áreas rurais, para suprir a carência de policiamento nessas regiões, nos últimos anos, o Sharp Eyes vêm expandindo sua atuação na China por meio da integração entre as áreas urbanas e o campo.
A meta para 2020 era estabelecer uma rede nacional e criar uma vigilância total, sem pontos cegos, para acompanhar 1,4 bilhão de habitantes. Ao que tudo indica, os chineses estão próximos de alcançá-la.
Vigiar e punir
O nome do projeto se inspira em uma citação do ex-líder revolucionário da China Mao Tsé-Tung, que escreveu em certa ocasião que as pessoas tinham "olhos penetrantes" quando desconfiavam de vizinhos que não viviam de acordo com os valores comunistas.
Não por acaso, o Sharp Eyes não somente traz mecanismos em que o Estado vigia o seu povo como também induz os cidadãos a vigiarem uns aos outros.
Além do governo, em muitas províncias chinesas é possível assistir às imagens das câmeras públicas por meio de caixas de TV especiais instaladas em residências. Desse modo, os moradores podem denunciar às autoridades, caso vejam algo suspeito como, por exemplo, um veículo sem placa ou algum caso de violência na rua.
A cada cinco anos, o governo chinês divulga as metas do seu projeto de vigilância para o período subsequente. O plano quinquenal de 2016, por exemplo, pretendia alcançar 100% de cobertura dos espaços públicos na China até 2020. Embora não haja dados oficiais disponíveis que confirmem se o programa atingiu a meta, tudo indica que ficou muito perto.
Para o período de 2021 a 2025, os objetivos envolvem fortalecer a prevenção e o controle da segurança pública, bem como melhorar a governança dos municípios por meio do sistema de vigilância em rede.
O paradoxo da segurança
Ainda que muita gente use os benefícios da segurança pública como argumento para implementar projetos de vigilância total — como o Sharp Eyes—, iniciativas desse tipo na prática trazem vários riscos para os cidadãos.
Rodrigo Firmino, coordenador da pós-graduação em gestão urbana da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná) e fundador da rede de estudos sobre vigilância e tecnologia Lavits, afirma que o sistema pode comprometer certos níveis de liberdade civil e privacidade, em nome de uma suposta garantia por mais segurança.
Esse paradoxo permite intensificar a vigilância sob a alegação famigerada de 'quem não deve não teme'
Rodrigo Firmino
Ainda, segundo o professor, não há como garantir que esse aparato tecnológico será sempre usado a favor da ética e da justiça social. Pelo contrário: ele afirma que a vigilância pode servir mesmo como uma forma de perseguir minorias e grupos opositores ao regime que controla o sistema.
O lado ruim do reconhecimento facial
Na província chinesa de Xinjiang, existem graves acusações de que as imagens obtidas pelas câmeras são usadas para perseguir os uigures, uma minoria de origem muçulmana. Ao serem identificados por reconhecimento facial, eles podem ser abordados pela polícia chinesa e levados a uma espécie de campo de internamento, onde há denúncias de que eles sofrem vários tipos de abusos de direitos humanos, como trabalho forçado, esterilização e estupros.
O diretor da Data Privacy Brasil, Bruno Bioni, observa que outro problema da vigilância tecnológica está nos sistemas de reconhecimento facial. "Tais tecnologias possuem mais chances de falhas com certos grupos da sociedade, como pessoas negras, o que leva a um reforço de práticas discriminatórias, por considerá-las suspeitas", afirma.
Isso acontece porque na base de formatação do sistema não são considerados diversos perfis representativos. O reconhecimento facial também tem altos índices de erro, por exemplo, com transexuais, travestis e pessoas não binárias.
Nem tão distante assim
Se o cenário chinês em alguma medida pode parecer uma distopia, o Brasil também vem embarcando na vigilância tecnológica. Embora não exista no país um projeto nacional nos moldes da China, o reconhecimento facial aplicado ao espaço público não é mais novidade por aqui.
Estados como São Paulo e Bahia, por exemplo, já têm iniciativas do gênero. A capital baiana, depois de estrear em 2019 e 2020 câmeras de reconhecimento facial nos circuitos do Carnaval para identificar foragidos da Justiça, agora se prepara para monitorar o Centro Histórico com o mesmo tipo de tecnologia. A previsão é de que o projeto comece a operar até outubro deste ano.
Em São Paulo, a Assembleia Legislativa havia aprovado em fevereiro deste ano o Projeto de Lei n. 865/2019, autorizando o uso de tecnologias de reconhecimento facial em estações, vagões do Metrô e trens da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos). Cerca de 20 organizações da sociedade civil se posicionaram contra o projeto e divulgaram uma carta aberta pedindo o veto do governador. Entre os motivos apresentados estavam a possibilidade de falhas de identificação, violação dos direitos humanos e da proteção de dados.
O governador de São Paulo, João Doria (PSDB-SP), vetou o projeto, com a justificativa de que as alterações no transporte metropolitano serem de competência do Poder Executivo e não do Legislativo.
Estamos caminhando então para um futuro onde seremos cada vez mais vigiados? Os especialistas acreditam que sim e, por isso, defendem uma maior participação da sociedade no debate.
"É importante avançar nessa discussão para que tais usos não sejam feitos em detrimento do Estado democrático e do direito do cidadão às suas liberdades fundamentais e individuais", destaca Bioni.
Firmino concorda: "A sociedade precisa compreender todas as dimensões envolvidas na adoção de tecnologias de vigilância e seus possíveis riscos. Com o perdão do trocadilho, devemos estar mais vigilantes".
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