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Passaporte de vacina é o que nos salvará do isolamento? Não é bem assim

Mulher apresenta seu "passe verde" em Israel, país com a maior taxa de vacinação do mundo - Reuters
Mulher apresenta seu "passe verde" em Israel, país com a maior taxa de vacinação do mundo Imagem: Reuters

Renata Baptista

De Tilt, em São Paulo

19/04/2021 04h00

As fotos do Instagram não me deixam mentir: é um alívio poder exibir o cartão do SUS carimbado. Depois de mais de um ano usando máscaras, passando álcool gel, pedindo delivery para tudo e evitando qualquer espaço com mais de meia dúzia de pessoas, a vacina contra covid-19 foi uma luz no fim do túnel. Mas, já deu para sacar que ela sozinha não vai resolver os nossos (muitos) problemas. Enquanto, por aqui, caminhamos a passos lentos para imunizar quem precisa (e aceita), países como Israel, EUA e China estão adotando o "passaporte da vacina".

Ele chega como um crachá VIP que literalmente abre portas e devolve alguma liberdade. É um código digital exibido na tela do celular, que pode ser lido rapidamente por máquinas para comprovar a vacinação das pessoas e permitir viagens internacionais —e também idas a restaurantes, shows e eventos esportivos, por exemplo.

É uma das formas mais óbvias de aliviar a circulação de pessoas e salvar setores como o do turismo, que amarga enormes prejuízos em todo o mundo —só no Brasil, já chegou a R$ 312,6 bilhões. No entanto, há riscos importantes, principalmente para pessoas que já foram muito afetadas pela pandemia. Especialistas veem enormes desafios éticos e técnicos envolvidos.

Os países mais engajados na ideia estão em estágio avançado de combate à pandemia. Em Israel, 56% da sua população receberam as duas doses da vacina (4,9 milhões de pessoas), contra 4,53% no Brasil (9,5 milhões). Nos EUA, 50,4% dos cidadãos com mais de 18 anos (131,2 milhões) estão parcialmente imunizados, enquanto 32,5% já estão totalmente vacinados. A China já administrou mais de 183 milhões de doses segundo a plataforma Our World in Data.

App Excelsior Pass - Divulgação - Divulgação
App Excelsior Pass
Imagem: Divulgação

Quem vai cuidar disso?

Um "passaporte de vacina" parece ser uma solução "inevitável", acredita Evandro Carvalho, professor de direito internacional da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Fundação Getulio Vargas (FGV). "Mas o debate não está sendo conduzido de maneira coletiva, por meio da OMS [Organização Mundial da Saúde], e isso deve gerar uma série de problemas", diz.

Nos EUA, por exemplo, o governo Biden identificou ao menos 17 iniciativas de passaportes em andamento no último mês, diz o jornal "The Washington Post". A falta de um padrão único multiplica a chance de falsificações e aumenta o risco de exposição de dados de saúde —já se provou ser fácil falsificar o passaporte usado em Nova York usando fotos postadas no Twitter, por exemplo.

Fora que, se for usado em fronteiras, terá de ser acordado entre vários países. "Se cada país começar a adotar os seus critérios, há ainda o risco de prejudicar o combate ao vírus e de criar uma dificuldade para o acesso aos países. Essa descoordenação é preocupante", afirma Carvalho.

A OMS disse em janeiro que é contra a criação desses passaportes e declarou que os governos "não deveriam impor a comprovação de vacinação". Mesmo assim, instituiu um grupo de trabalho para avaliar esse tipo de iniciativa.

Os passaportes também podem levar às pessoas a abandonarem as máscaras. Ainda não sabemos quanto tempo dura a inoculação do vírus, quantas novas variantes podem surgir ou se há vacinas menos aceitas em um ou outro país.

Preconceito a não-vacinados

A Casa Branca já adiantou que acha o passaporte uma forma de segregação e não deve propor uma iniciativa federal. "A privacidade e os direitos dos americanos devem ser protegidos, para que esses sistemas não sejam usados contra as pessoas de forma injusta", disse a secretária de imprensa Jen Psaki.

Segundo o projeto da UE, não se trata de impor a vacinação. Quem não puder ou quiser ser vacinado poderá circular como os vacinados, mas precisará cumprir quarentena ou apresentar testes —o que também leva a uma segregação social, já que o exame é caro.

O passaporte poderia ser de papel, como acontece com o certificado internacional de vacina contra febre amarela, por exemplo, um cartão amarelo que é anexado ao passaporte oficial. Ou o cartão de vacinação exigido pelas escolas para matrículas de crianças.

No entanto, o modelo mais discutido no mundo hoje, por agilizar os processos, é o digital, com QR Code —que, vale dizer, também poderia ser impresso.

"Se esse passaporte for digital, que parcela da população não teria acesso a um celular que disponibilize o aplicativo?", questiona Christian Perrone, coordenador de Direito e Tecnologia do ITS-Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade). Alternativas seriam uma impressora ou um computador, outros aparelhos que nem todos têm.

O colunista Geoffrey A. Fowler, do "Washington Post", conta que levou 20 minutos usando o Zoom para ajudar um octogenário a configurar seu passe para ele participar de um teste do jornal com o Excelsior Pass. Isso evidencia uma discriminação etária também.

Há outros fatores a se considerar. Ainda não houve testes suficientes para saber se a vacina funciona em crianças e grávidas. No Brasil, até o final do mês passado, o número de brancos que receberam a vacina era quase o dobro do de negros e pardos.

Ainda há uma parcela da população que não pode se vacinar porque já teve alergias a algum dos componentes do imunizante. E algumas pessoas optam por não receber a vacina: pesquisa recente da Pew Research revela que 30% dos norte-americanos provavelmente ou definitivamente não aceitariam ser imunizados.

E a privacidade de dados?

Seja em papel ou QR Code, um certificado ou passaporte precisa de acesso aos registros oficiais de vacinação de um país e um método seguro para identificar o dono daqueles dados. Uma coisa é ser apresentado eventualmente a um órgão público de controle de fronteira; outra é inserir esses dados em centenas de totens eletrônicos de uma cidade ou aeroporto.

Mas é preciso discutir a privacidade e o tratamento dos dados para essas tecnologias, para se impor limites claros. O app Excelsior Pass, por exemplo, pedia informações como idade, local de trabalho, telefone e data da vacinação.

O Excelsior Pass e o CommonPass colocaram algumas salvaguardas em suas plataformas, como não armazenar informações de saúde no telefone; não coletar a geolocalização ou informações que possam rastrear um cidadão; e os aplicativos excluem suas informações pessoais após cada verificação. Mas serão suficientes?

"A verificação de passaporte em um país estrangeiro é uma transferência de dados. E o contrário também. Temos que garantir que os dois países, nas duas pontas, tenham leis específicas sobre privacidade e proteção das informações. O risco seria o de vazamentos e ataques a essas bases onde os dados estejam armazenados", explica Gisele Truzzi, advogada especializada em direito digital.