Quando ficou difícil viver o luto, um antigo telefone entrou em cena
Em 11 de março de 2011, o paisagista e ex-metalúrgico Itaru Sasaki cuidava das flores em seu jardim, em um vilarejo de Otsuchi, no Japão, quando sentiu a terra tremer. Às 14h46 daquela tarde, um terremoto de nove graus de magnitude no Oceano Pacífico danificou os resfriadores da usina de Fukushima, provocou o maior desastre nuclear desde o desastre de Chernobyl, em 1986, e matou mais de 18 mil pessoas. Sasaki então criou um meio das famílias processarem sua dor: uma cabine telefônica branca instalada fora de sua residência. Mas o equipamento não tem cabos nem está interligado à rede de telefonia local.
A cabine chamada Telefone do Vento, que ajudou um vilarejo japonês a passar pelo luto de Fukushima há dez anos, ampara agora a dor de amigos e familiares de vítimas de outras ondas: as da covid-19. Em vez de ligações, tem sido usada para simular conversas privadas entre quem ficou com os familiares e amigos que partiram.
As famílias em luto talvez tivessem uma última coisa a dizer aos seus entes queridos. Então achei que era necessário conectar os sentimentos dos que partiram aos dos sobreviventes
Itaru Sasaki, em entrevista à BBC
"A pandemia, como outro desastre, chegou de repente e quando uma morte é repentina, o luto da família é mais difícil", disse Sasaki recentemente ao jornal português "Público". Um documentário sobre a cabine foi produzido pelo canal de TV europeu Arte.
A ideia da cabine surgiu quando o primo de Sasaki foi diagnosticado com câncer em fase terminal. Teria poucos meses de vida. A instalação seria então usada para mantê-los conectados: quando sentisse saudades, ele simularia um telefonema para que pudesse dizer a ele o que gostaria de dizer em vida. Sasaki e seus familiares sobreviveram ao tsunami de 2011, pois apesar de as ondas terem chegado a 20 metros de altura, a casa deles ficava em um ponto a 55 metros do nível do mar.
Ouvir-se faz parte da ritualística do luto
Segundo o psicanalista Christian Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo) e colunista de Tilt, a invenção de Sasaki demonstra a importância de se ouvir em voz alta em momentos como o atual, com a pandemia de covid ainda causando mortes pelo Brasil e pelo mundo.
A força da palavra é insubstituível, e, naquela cabine, existe um ambiente muito favorável para que haja mesmo uma conversa. Ainda que o outro não responda, ele responde no silêncio que se sucede, a partir de uma memória
Christian Dunker, psicanalista
É na hora da fala, lembra o especialista, que muitas vezes vem o choro e a emoção que não existiam, ou existiam de forma comprimida, quando estavam no estágio do pensamento.
Para ele, objetos como aquele aparelho telefônico integram a chamada ritualística do luto. "Ela leva você para o passado, leva a lembrar outro tempo em que existiam cabines assim. Lembra vivências que você teve quando estava com aquela pessoa 20 anos, 30 anos, 40 anos atrás. Isso ajuda muito o luto. Confere materialidade e afetividade à experiência. E confere um sentido de que ali você precisa dizer, precisa resumir, precisa sintetizar", explica.
No Brasil, afirma Dunker, a luta hoje é para mitigar efeitos deletérios que ocorrem no primeiro momento do luto, a chamada realização da perda. "Nessa hora, atrapalha o luto das pessoas ver alguém falando em gripezinha, que todo mundo morre, que é assim mesmo", diz o psicanalista, referindo-se ao termo usado pelo presidente Jair Bolsonaro para descrever a covid-19, no ano passado.
A consequência é que "estamos transformando o nosso luto em ódio real". "O luto só se concluiu quando a gente o integra em uma comunidade, lembra que a história daquela pessoa faz parte da nossa história e de todo mundo que conviveu com ela."
Para fazer essa travessia, explica o professor, são muito importantes os suportes ritualísticos do luto, como a missa de sétimo dia, o encontro, o enterro, o velório. "Não temos aqui bandeira a meio pau, e sim a contabilização das perdas, em números. Estamos acumulando um passivo de trabalho de luto que vai voltar para nós cedo ou tarde, seja em forma de depressão, seja de melancolia, de hipocondria ou de estresse traumático. Atacar o luto como estamos atacando não é legal."
Construir cabines, reconstruir um país
Gustavo Daudt Fischer, professor do programa de pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), lembra que a vontade de estabelecer contato com os mortos é recorrente na humanidade, desde o ponto de vista religioso até os chamados "shows de lanterna mágica" no século 18, quando eram projetadas imagens que remetiam a um clima fantasmagórico.
O rompimento súbito talvez crie ainda mais a necessidade de tentar seguir em contato, já que não houve um rito de despedida e a conversa foi interrompida. Isso parece fazer ainda mais sentido se pensarmos o telefone como um objeto tecnocultural. Seu uso simples e rotineiro produz sentidos de cotidianidade, conversação, intimidade
Gustavo Daudt Fischer, professor da Unisinos
Ao mesmo tempo, diz, a cabine telefônica, isolada geográfica e temporalmente e em vias de extinção, torna-se uma espécie de totem ou espaço de reverência, como se resgatasse o contato também com uma tradição oriental de valorização dos silêncios e das pausas.
No caso de pessoas mais velhas, ele nota uma naturalidade diante de um aparelho discado que as poupa de encarar a situação como um curto-circuito entre passado e presente.
Fazendo paralelos com o momento atual do país, Fischer diz que a deterioração da relação do Brasil com a memória se expressa na perda de obras e objetos devastados em incêndios, roubos e falta de investimento e também na busca de familiares por respostas sobre os mortos e desaparecidos na ditadura militar, ocorrida no país de 1964 a 1985.
"Com as perdas na pandemia, os ritos de despedida foram encurtados, simplificados. É possível que isso gere respostas na arte e na cultura análogas ao que vemos no Japão, ainda que, cotidianamente, encontram-se postagens em redes sociais nas quais parentes e amigos falam 'diretamente' com a pessoa falecida em seu perfil", diz.
Fischer defende, diante do contexto atual, a necessidade de expressar de alguma forma que a vida daquelas pessoas não foi em vão. "Não nos bastará construir cabines telefônicas, precisamos reconstruir um país inteiro."
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