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Falta celular, 4G, app e memória: como pobres ficam sem auxílio emergencial

Tela de aplicativo da Caixa - Divulgação
Tela de aplicativo da Caixa Imagem: Divulgação

Letícia Naísa

De Tilt, em São Paulo

27/05/2021 02h00

O processo para solicitar o auxílio emergencial parece simples: baixar um aplicativo, preencher uma ficha de cadastro e torcer para ter o pedido aprovado. Mesmo assim, uma parcela da população que mais precisava do benefício não conseguiu realizar o passo a passo para ter direito a ele. A exclusão digital tem sido a principal barreira de acesso.

Uma pesquisa do FGVcemif (Centro de Estudos de Microfinanças e Inclusão Financeira da Fundação Getúlio Vargas) apontou que a falta de internet ou acesso a dispositivos com rede dificultaram a solicitação do auxílio emergencial, especialmente entre as classes D (entre dois e quatro salários mínimos) e E. A falta de habilidade para lidar com o celular também agravou o problema.

Interrompido pelo governo por três meses, o auxílio emergencial voltou a ser pago em abril deste ano com valor reduzido em comparação ao ano passado. De R$ 600 mensais, o benefício em 2021 será pago em quatro parcelas que variam entre R$ 150 e R$ 375.

A pesquisa mostra que os principais motivos que influenciaram a falta de acesso ao auxílio emergencial foram:

  • não ter um telefone celular;
  • limitação da internet;
  • não saber baixar aplicativos no celular;
  • não ter espaço suficiente no celular para baixar aplicativos ou não conseguir usar o aplicativo da Caixa.

Todos eles prejudicando ainda mais as classes mais baixas.

O estudo utilizou dados secundários da segunda edição do painel TIC Covid-19, do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br). Foi aplicado um questionário para usuários de internet com mais de 16 anos em todas as regiões do país entre junho e setembro de 2020. No total, 2.408 pessoas participaram da pesquisa.

Distribuição desigual de celulares

Entre o público geral, apenas 7% dos entrevistados apontaram não ter um celular. Entre as classes D e E, o percentual salta para 20%.

Ou seja, "20% dos usuários de internet da classe D e E que tentaram e não conseguiram o auxílio do governo federal apontam a indisponibilidade do celular como uma das razões para a não obtenção desse benefício", escrevem os autores da pesquisa.

Motivos para o não recebimento do Auxílio Emergencial -- Porque não tinha um telefone celular (%) - CGI (2020) - CGI (2020)
Motivos para o não recebimento do Auxílio Emergencial -- Porque não tinha um telefone celular (%)
Imagem: CGI (2020)

"Existe a possibilidade de que os celulares sejam compartilhados", afirma Lauro Gonzalez, coordenador do FGVcemif. "A casa às vezes tem apenas um celular bom, isso é relatado como um problema."

Apesar do alto número de celulares ativos no Brasil (240,6 milhões até março, segundo a consultoria Teleco), o professor aponta que a distribuição dos aparelhos se mostra ser desigual. "No geral, pouca gente fala sobre isso, o celular é muito disseminado, mas é menos disseminado nessas classes."

Dificuldade para usar o celular

Outro problema apontado pela pesquisa é relativo à dificuldade de uso dos aparelhos. "Imagina ter acesso, mas não saber usar, não saber baixar um aplicativo", comenta o autor do estudo. Há um componente geracional em torno da questão, diz o pesquisador, já que adolescentes, mesmo de baixa renda, dominam melhor o uso da tecnologia e têm mais familiaridade com o celular do que os pais e avós.

"Mas tem um componente educacional, isso tem uma correlação forte com acesso à educação", afirma.

Motivos para o não recebimento do Auxílio Emergencial -- Por não saber baixar aplicativos no celular (%) - CGI (2020) - CGI (2020)
Motivos para o não recebimento do Auxílio Emergencial -- Por não saber baixar aplicativos no celular (%)
Imagem: CGI (2020)

A qualidade dos celulares aos quais essas classes têm acesso também é um problema, como falta de espaço para instalar o aplicativo da Caixa ou de qualquer outro benefício. Questões de infraestrutura também preocupam os pesquisadores.

"O problema de acesso à internet é pequeno para as classes A, B e C. Eu mesmo não tive problemas de conexão dando aula em casa, mas não é verdade que todo o mundo tem o mesmo acesso", diz Gonzalez. "A infraestrutura tecnológica em bairros afastados é pior", ressalta.

Motivos para o não recebimento do Auxílio Emergencial -- Por limitações da Internet (%) - CGI (2020) - CGI (2020)
Motivos para o não recebimento do Auxílio Emergencial -- Por limitações da Internet (%)
Imagem: CGI (2020)

Celular pra quê?

O estudo também revela que o uso de internet em atividades como comércio eletrônico e transações financeiras é o mais baixo, apenas 50% do público que respondeu à pesquisa afirma utilizar a internet desta forma. "Há um problema de acesso, que, por sua vez, implica o uso. Existem pacotes de dados para usar redes sociais, mas que não oferecem acesso ao resto da internet, isso limita o uso de outros aplicativos", avalia o pesquisador. "As pessoas acabam usando o celular pra quê? Entre as classes D e E esse uso é mais limitado."

Percentual de usuários de internet que realizaram consultas, pagamentos ou transações financeiras. Fonte: CGI (2020) - CGI (2020) - CGI (2020)
Percentual de usuários de internet que realizaram consultas, pagamentos ou transações financeiras
Imagem: CGI (2020)

Para Gonzalez, os obstáculos para obtenção do auxílio emergencial mostram um diagnóstico de exclusão digital no país que precisa ser considerado na hora de implementar políticas públicas. "A promessa da digitalização de serviços é muito grande para o desenvolvimento, é uma grande contribuição, mas isso precisa ser melhor entendido", observa o pesquisador. "Não basta ter um celular na mão, é preciso ter uma conexão de qualidade, um aparelho de qualidade e que o usuário saiba usar a tecnologia."