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Cadê a legenda? Quem tem deficiência pena para consumir conteúdo digital

O youtuber Guilherme Fernandes, 23, usou o seu primeiro aparelho auditivo com quatro anos - Arquivo pessoal
O youtuber Guilherme Fernandes, 23, usou o seu primeiro aparelho auditivo com quatro anos Imagem: Arquivo pessoal

Eduardo Silva e Giacomo Vicenzo

Colaboração para Tilt

21/06/2021 04h00Atualizada em 22/06/2021 10h56

As legendas automáticas do YouTube, o recurso de letras de música no Spotify, fotos postadas com descrições detalhadas no Instagram podem passar a impressão de que as plataformas online estão mais inclusivas. Mas quem tem algum tipo de deficiência diz que o mundo digital ainda precisa melhorar muito para que seja considerado inclusivo.

A falta de recursos simples como audiodescrição, legendas ou intérpretes de Libras (Língua Brasileira de Sinais) é uma barreira para o consumo de conteúdos na internet. Segundo especialistas ouvidos por Tilt, isso se dá porque ainda existe o capacitismo, a discriminação contra pessoas com deficiência baseada na pré-concepção errada do que elas são ou não capazes de fazer, em empresas que produzem tecnologia.

Quem estuda o tema afirma que a tecnologia se torna excludente quando pessoas com deficiência deixam de ser consideradas como parte do público-alvo de soluções digitais.

"Cada vez mais surgem aplicativos e redes sociais que só priorizam áudios, sem transcrições ou legendas, como o recurso 'Space' do Twitter ou a rede Clubhouse", diz o youtuber Guilherme Fernandes, 23, que tem deficiência auditiva.

Ser surdo e youtuber

Guilherme Fernandes começou a usar aparelho auditivo com quatro anos de idade. Aos 15, veio o implante coclear (aparelho que restaura a função auditiva em pessoas com surdez severa ou profunda), seguido pelo primeiro smartphone do rapaz.

Hoje, ele tem um canal no YouTube onde fala da sua vida como pessoa com surdez e da relação com as tecnologias.

"Muitas pessoas têm um estereótipo muito forte de que os surdos escutam nada ou quase nada. Atualmente, com o implante coclear, até surdos profundos, como eu, podem 'ouvir'. Ainda não é 100% efetivo, pois ouvir é diferente de entender, mas já é o suficiente para conseguir manter uma conversa com alguém ou o que mais amo: ouvir música", explica.

As redes facilitaram a comunicação e o trabalho do youtuber, mas a falta de legendas em conteúdos sonoros ou audiovisuais de influenciadores os impedem de serem inclusivos.

Cadê a legenda?

No serviço de streaming Spotify, é possível acompanhar as letras das músicas em tempo real graças ao Musixmatch, mas o recurso ainda não está disponível em episódios de podcasts, por exemplo. Para isso, as legendas precisam ser incluídas manualmente.

Já no YouTube, as legendas da comunidade — contribuições dos usuários para adicionar legendas aos vídeos que não tinham este recurso — foram desativadas em setembro de 2020. Na ocasião, a plataforma alegou spam, abuso e envios de baixa qualidade como motivos para a remoção.

Por mais que falem que não é obrigação de tais pessoas legendarem, precisamos lembrar de que não é nossa culpa nascer surdo, então é questão de empatia incluir a gente

Guilherme Fernandes, youtuber e surdo

Para ele, incluir pessoas com deficiência nos negócios é bom para influenciadores e empresas. "Eles estão perdendo uma boa quantidade de clientes, algo que poderia ser resolvido simplesmente legendando, o que não é caro", diz.

O Brasil tem mais de 10,7 milhões de pessoas com deficiência auditiva no Brasil. Desse número, 2,3 milhões têm deficiência severa. Os dados são de um estudo feito em 2019 pelo Instituto Locomotiva e a SAS (Semana da Acessibilidade Surda). Ainda segundo o levantamento, só 9% das pessoas com deficiência auditiva nasceram com ela, ou seja, 91% a adquiriu ao longo da vida (e metade disso, antes dos 50 anos).

Nem sempre a legenda resolve

Existe uma leva de influencers que passaram a legendar seus vídeos e Reels no Instagram com o objetivo de tornar o conteúdo mais acessível — lembra o vídeo do humorista Esse Menino sobre os emails da 'Pifáizer'?

Essas iniciativas são sim uma mão na roda da acessibilidade, mas infelizmente não é porque um vídeo tem legenda que ele é 100% acessível.

Fábio Mariano Borges, consultor de inclusão da diversidade e professor visitante da Universidade de Nottingham, no Reino Unido, explica que a interação com a tecnologia vai depender se a deficiência da pessoa foi adquirida ou é de nascença. Ele teve perda de audição grave aos oito anos de idade.

[A legenda] soluciona apenas para uma parte: em geral, para pessoas oralizadas, como eu, ou pessoas surdas que tiveram a possibilidade de serem alfabetizadas

Fábio Mariano Borges, consultor de inclusão

"Por isso, é preciso promover o uso de Libras, pois uma boa parte das pessoas surdas não têm acesso a uma leitura de legenda porque o sistema neural delas funciona de outra forma, com outra língua [a de sinais]", completa.

Apesar de serem tipos de deficiência diferentes, quem é cego ou tem baixa visão também tem um jeito diferente de assimilar conteúdos audiovisuais, segundo Borges.

"Já fui professor de três alunos cegos e utilizava muitos filmes nas minhas aulas. Os três apenas pediam para que eu enviasse os filmes antecipadamente para eles, porque eles têm um processo de entender o que está nas imagens", lembra.

Na internet, as pessoas com algum nível de deficiência visual (aproximadamente 6,5 milhões de brasileiros, segundo o IBGE) precisam do auxílio de leitores de tela, seja para aplicativos ou para páginas da web. Em conteúdos audiovisuais, como filmes e vídeos, a audiodescrição é outro recurso fundamental.

O capacitismo

Se tem tanta gente com algum tipo de deficiência tentando usar plataformas digitais, por que empresas desenvolvem projetos de tecnologia que não pensam em diferentes características, cenários e condições de uso? A resposta é o capacitismo, explica Talita Pagani, especialista em experiência do usuário e acessibilidade na web.

Segundo Pagani, nem sempre ele se manifesta de forma clara. "É muito mais nas sutilezas: quando você acha que as pessoas com deficiência não são capazes de realizar atividades cotidianas, como estudar, comprar ou se entreter com alguma coisa. Ou, quando fazem isso, estão sendo extraordinárias ou um exemplo de superação", explica.

O consultor Borges acrescenta que outra resposta para a pergunta é o fato de as tecnologias, no geral, não serem projetadas para serem inclusivas desde a sua concepção. A falta de inclusão em vídeos, por exemplo, remonta aos cinemas.

Quem produz conteúdo relevante sem oferecer opções de acessibilidade está limitando o acesso àquela informação, ressalta Pagani.

Como produzir soluções digitais sem capacitismo?

Para o youtuber Guilherme Fernandes, envolver pessoas com deficiência no processo de desenvolvimento das plataformas é uma boa saída para o capacitismo.

Se as [empresas de] tecnologias começassem a contratar pessoas com deficiência, teriam muitas ideias de acessibilidade

Guilherme Fernandes, youtuber

O analista de engenharia de TI (Tecnologia da Informação) Flavio Milani, 38, tem deficiência auditiva e trabalha com programação e acessibilidade nas plataformas web e mobile. Segundo ele, as principais barreiras são as dificuldades de entendimento de termos técnicos no dia a dia.

Mas existe um caminho de mudança. Para melhorar o fluxo, ferramentas que auxiliam a transcrição de voz para texto e outras que fazem chamadas de vídeo com intérpretes de Libras de forma remota estão ajudando.

Um projeto que participou na empresa que trabalhava, por exemplo, consistiu na criação de um revisor de texto automático para a linguagem da programação. "Com isso, as pessoas com deficiência ficam mais independentes e autodidatas, e, ao mesmo tempo, podem colaborar com outros membros da equipe através de uso de tecnologias assistivas", diz.