Guerra de variantes: brasileiros desvendam como uma cepa virou dominante
Vamos imaginar que cada variante do coronavírus (Sars-CoV-2) é um atleta de alto desempenho e quatro deles disputam uma corrida cujo objetivo final é a contaminação de pessoas. Assim que foi dada a largada, no início da pandemia, o corredor número 1 assustou a todos com sua habilidade de sair na frente.
Depois de ganhar velocidade, entrou num ritmo médio e abriu espaço para o segundo participante, que nem estava tão atrás assim. Ele é um pouco mais evoluído e rápido graças a uma mutação genética que o deixou mais transmissível. O até então líder continuou correndo um pouco atrás, em alguns momentos voltou à frente, em outros ficou para trás.
O terceiro competidor era mais novo e aprendeu a ser mais veloz no meio da corrida, também com ajuda dos poderes da mutação genética. Ele assumiu a liderança quando os dois primeiros já estavam cansados. Aí veio a quarta corredora: mais nova, mais resistente, mais treinada e a mais forte de todas. Entrou na disputa e deixou todos comendo poeira, aumentando muito o perigo de contaminação.
A comparação da disseminação do vírus com uma corrida foi a maneira didática encontrada para explicar o que uma pesquisa realizada por 28 cientistas brasileiros provou sobre a trajetória das cepas no país. O estudo publicado recentemente na revista científica "Nature Medicine", principal publicação científica do mundo, mostrou que a variante P.1 (Gama) é a mais contagiosa atualmente no Brasil e temos muito o que aprender com sua capacidade de ganhar "superpoderes".
Abaixo estão quatro das cepas que se destacaram ao longo da pandemia. Elas ganharam força no país e foram responsáveis por boa parte dos casos de covid-19.
- B.1.1.28;
- B.1.1.33;
- P.2 (Zeta) - classificada pelos cientistas como VOI (Variante de Interesse), que são aquelas que se tornam predominantes em alguma área, mas não necessariamente mais transmissíveis;
- P.1 (Gama) - classificada como VOC (Variante de Preocupação), pelo risco de ser mais transmissível e/ou resistente.
Segundo Felipe Naveca, virologista da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) Amazônia que coordenou a análise, a variante P.1 "engoliu" outras linhagens que circulavam no Estado em apenas dois meses, e parte disso se deve à mutação que o vírus veio sofrendo ao longo de 2020.
"É como se existisse uma competição entre as variantes do vírus, onde a mais forte permaneceu na ativa", diz o cientista, que foi o primeiro a sequenciar o DNA do coronavírus na região Norte do Brasil, no começo da pandemia, e descobriu as novas linhagens do responsável pela covid-19.
Com o avanço da P.1, a epidemia no Brasil se agravou e houve colapso no sistema de saúde amazonense.
Variantes no Brasil
A disseminação do coronavírus no Brasil ganhou força com a variante B.1.1.28 em março de 2020. No mês seguinte, veio a B.1.1.33, com uma pequena evolução dele após mutações, e as duas foram se revezando como grandes responsáveis pelo aumento doença no Brasil até setembro de 2020.
A partir de agosto, a P.2 (Zeta) foi descoberta no Rio de Janeiro e se fortaleceu como competidora. Mas tudo mudou com a chegada da P.1, de acordo com a pesquisa publicada: a nova variante se tornou presente em nove de cada 10 casos de covid-19 no Brasil há alguns meses.
Para se ter uma ideia, até janeiro de 2021, 18 linhagens diferentes tinham sido detectadas pelos cientistas somente no Amazonas. No mundo, são dezenas delas, mas nem todas viram Variantes De Preocupação (VOC), que são as mais estudadas, ou Variantes De Interesse (VOI), que são monitoradas.
Abaixo você pode acompanhar a evolução mês a mês de quatro das que tiveram maior frequência (e despertaram a atenção dos pesquisadores).
A P.1 está praticamente em 100% das amostras do Amazonas. A chance de aparecer outra P.1 ou que a própria fique ainda mais perigosa é real"
Felipe Naveca
De acordo com os pesquisadores brasileiros, os "superpoderes" que fizeram a P.1 dominar os casos no Brasil foram:
- Poder de dar salto evolutivo acumulando grande volume de mutações;
- Poder de infecção duas vezes maior: possui proteína com maior capacidade de multiplicar o vírus nas células humanas, uma porta aberta para reinfecções;
- Poder de escapar de anticorpos que já estavam presentes na população e que poderiam neutralizá-la;
- Poder de gerar nova sub-linhagem mutante: a P.1-like.
Cientificamente falando, tudo isso é culpa das várias mutações que o vírus sofreu ao longo de 2020 no Brasil e no mundo. Mas, o que proporcionou um cenário favorável a tantas mutações foi a falta de controle sobre ele: relaxamento das medidas de isolamento social e baixo índice de distanciamento, dizem os especialistas.
Quanto mais chances um vírus tem de se espalhar, mais consegue se replicar e adaptar. "As [variantes] que se adaptam melhor à população e conseguem ter um melhor 'fitness' e ganham das demais que circulam", explica Paola Resende, virologista da Fiocruz no Rio de Janeiro que também assina o artigo da "Nature".
As análises genômicas confirmam que o coronavírus não para e nem vai parar enquanto a sua circulação estiver desenfreada.
"O que assusta é que o vírus continua evoluindo, e a letalidade é uma consequência indireta desse processo", acrescenta Naveca.
O objetivo do coronavírus é contaminar o maior número de pessoas possível para continuar ativo. Para isso, replica seu material genético.
As provas científicas dessa guerra de variantes que o estudo brasileiro na "Nature" mostrou se somam aos argumentos de que é preciso barrar a transmissão do coronavírus.
As mutações são naturais e vão continuar, mas o surgimento acelerado de novas versões soa como um alerta mundial: e se uma variante em breve não conseguir ser combatida com as vacinas que já estão salvando vidas por aí?
Por enquanto, estudos indicam que as vacinas Coronavac, Oxford/AstraZeneca e Pfizer são eficazes contra as VOC, inclusive a potente P.1. O que é um alívio.
"Mas essas alterações podem fazer com que o vírus se adapte melhor, se espalhe mais na população e, possivelmente, surja uma alteração que permite um escape vacinal", afirma a pesquisadora Paola Resende.
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