Celulares apreendidos em presídios são repaginados e doados a estudantes
Celulares apreendidos em revistas em presídios e em abordagem policiais ganharam nova finalidade no Rio Grande do Sul. Desde o ano passado, os aparelhos, frutos de crimes, passaram a ser consertados e doados a estudantes com dificuldades para acompanhar as aulas online em meio à pandemia de covid-19.
Até então, os telefones ficavam em depósitos até serem triturados. O projeto, chamado de Alquimia II, é iniciativa do MP-RS (Ministério Público do Rio Grande do Sul) e conta com parceria de três universidades e alguns órgãos públicos. Só no ano passado foram doados 416 celulares.
Em 2021, a promotoria já obteve 1.904 aparelhos e, do total, 256 já foram arrumados e configurados. Até o momento, 190 deles já estão com estudantes, segundo o MP.
Um celular para quatro pessoas
A família de Roni Ózio, 50, de Osório, no litoral gaúcho, foi uma das beneficiárias do projeto. Por meses, a briga pelo único celular disponível foi acirrada na casa dele, que vive com dois filhos, de cinco e 13 anos, e a esposa.
De um lado, as crianças precisavam se dividir para usar o celular do pai para as tarefas da escola. Do outro, a sua esposa também necessitava do telefone para ajudar em seu curso técnico de enfermagem. "Daí a gente tinha que fazer uso do celular cada um em um horário diferente. Ela trabalhava também e precisava o telefone no trabalho dela", explica Ózio.
Mailor Cristina Kingeski é diretora da escola Escola Municipal de Ensino Fundamental Osvaldo Amaral, onde André, o filho de 13 anos de Ózio, estuda. A docente lembra que estava preocupada com o rendimento escolar do jovem. Ele já havia reprovado outras vezes e não estava conseguindo acompanhar a turma durante as aulas online.
Além de André, outros alunos também apresentavam dificuldades. "Alguns não tinham internet em casa ou o sinal era fraco, outros tinham problemas porque o telefone era muito simples, inferior às exigências dos apps. E havia ainda quem não tinha computador em casa. Ou ainda famílias com cinco filhos que só tinham um celular", conta Kingeski.
Dos 940 estudantes da Escola, foi identificado que cerca de 100 alunos estavam nessa situação.
Ouvindo as notícias pelo rádio, a professora soube da apreensão de 20 celulares pela polícia, e acabou procurando o MP, em 29 de março deste ano. "Eu perguntei para a promotora de educação Cristiane [Della Méa Corrales]: 'quem sabe tu me cede esses celulares para os alunos que estão com dificuldade'", relembra Kingeski.
Depois de passar por análise e conserto na universidade PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), em Porto Alegre, a 103 km de distância da escola, os celulares começaram a ser distribuídos, cerca de 20 dias depois. E André comemorou o dele.
"Foi ótimo para ele. Ele recebeu o telefonezinho e ficou faceiro, faz os estudos dele por ali. A gente não tinha condições de comprar outro telefone, eu estou encostado, com o auxílio-doença", afirma o pai do estudante.
Outra família beneficiada foi da operadora de caixa Catiane Lopes dos Santos, 36, que tem uma filha de nove anos e um menino de 13. Com só um celular em casa, já estava difícil conciliar o uso do aparelho pelos dois.
Em março deste ano, ela conseguiu um emprego em um supermercado e teve que levar o celular consigo. "Ficava difícil, atrasava atividades deles", diz a mãe. As crianças permaneceram cerca de um mês nesta situação, até receberem uma ligação do colégio."Eu estava saindo do serviço quando a coordenadora me ligou. Na hora não entendi muito bem. Fui até a escola para uma reunião e avisaram que a gente receberia o celular. É difícil isso acontecer. Fiquei meio surpresa."
Seleção rigorosa dos celulares
Antes de serem distribuídos para os estudantes, os aparelhos passam por duas "peneiras": os celulares com telas muito pequenas (abaixo de quatro polegadas fica difícil acompanhar as aulas) e muitos antigos, com sistema operacional inferior ao Android 5, são retirados da seleção.
Com isso, apenas 20% dos celulares são aproveitados e conseguem chegar às mãos dos estudantes, explica o promotor de justiça de Osório, Fernando Andrade Alves. "Dos 1.118 celulares que vieram de Rio Grande [no Sul do Estado] só conseguimos trabalhar com 290 e, nas universidades, só 40 vão dar para recuperar", exemplifica o promotor. Neste caso, o percentual de aproveitamento foi de 3,5%.
Repaginada
Inicialmente, os reparos nos aparelhos eram feitos apenas pela PUC-RS. Porém, outras duas instituições — distantes de Porto Alegre — passaram a fazer o serviço para contribuir com o projeto: a Unijuí (Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul) e a URI (Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões).
O serviço realizado pelas universidades é gratuito, porém, caso seja necessária alguma peça o Ministério Público é informado.
Após a higienização, os telefones são colocados para recarregar — o que já pode indicar se há algum problema na bateria, já que alguns estão guardados há anos. "Alguns podem levar 12 horas para ficar com a carga completa", explica o professor da PUC-RS Anderson Terroso, que coordena o projeto dentro da universidade.
A segunda etapa é formatar os celulares e atualização do sistema operacional. Se necessário, peças dos aparelhos são substituídas. A tela, normalmente trincada ou quebrada, é o item que mais precisa ser trocado.
Apesar de o celular ser resetado com as configurações de fábrica, os técnicos fazem uma segunda varredura para ver se não ficou nenhum resquício de dados. A etapa é importante, pois alguns desses aparelhos continham vídeos e fotos de crimes.
Na sequência, são instalados os aplicativos necessários para os alunos acompanharem as aulas, como o Google Classroom e leitor de PDFs, entre outros. "O aparelho já sai daqui pronto para uso", explica Terroso. "Para os técnicos [voluntários] foi ótimo, sentiram-se super felizes de ajudar."
A maior parte (80%) dos celulares que chega para os reparos na instituição são da marca Samsung — inclusive alguns de última geração. Na sequência, vem aparelhos da Motorola.
Projeto Alquimia II
O projeto começou em 2020 em Osório e Maquiné.oje tem abrangência estadual. A chefia do Ministério Público teve conhecimento da iniciativa e decidiu torná-la institucional, podendo ser replicada em outras promotorias gaúchas.
A ampliação poderia, assim, ajudar a minimizar de evasão escolar. Houve redução de 6% no número de matriculados, na comparação entre 2020 e 2021, o que, "sinaliza cenário bastante preocupante de evasão", afirmou secretária estadual de educação, Raquel Figueiredo Alessandri Teixeira, durante o seminário "O RS pós pandemia", realizado em maio.
Inspiração para outros estados
Em Mato Grosso do Sul, a promotora Jiskia Trentin decidiu fazer um projeto parecido que ganhou o nome de "Transforme". Por lá, os celulares também são consertados por duas universidades: Estácio de Sá e Universidade Católica de Sá.
No início deste ano, Trentin descobriu que havia 2 mil aparelhos disponíveis, já separados para destruição. A promotora ingressou com pedido judicial para liberação dos aparelhos, e os celulares já foram entregues para conserto. Na metade de junho, a primeira remessa de 198 de celulares começou a ser distribuída aos alunos.
Compra de celulares por quem comete crimes
Em Rio Grande (RS), um outro projeto envolve a compra celulares novos. Os equipamentos são resultado de acordos do Ministério Público com pessoas que cometeram crimes não violentos ou com grave ameaça, e que confessaram a prática (a pena precisa ser inferior a quatro anos). Ficam de fora desses acordos crimes de violência doméstica, por exemplo.
De janeiro deste ano até agora, 102 aparelhos já foram doados. Em um dos acordos, 30 celulares foram garantidos para os estudantes. O caso envolvia um homicídio culposo em local de trabalho. "A doação não foi a única condição do acordo. Envolveu também a prestação de serviço à comunidade", explica o promotor Marcelo Nahuys Thormann, responsável pelo projeto.
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