Reconhecimento facial pela PF é considerado "preocupante" e até ilícito
O novo sistema da Polícia Federal para coletar, armazenar e cruzar dados biométricos é "preocupante" e "ilícito", se não for usado estritamente para investigações em curso. O alerta foi feito pelo Data Privacy Brasil, organização não governamental que se dedica à proteção de dados pessoais.
Chamado de Abis (sigla para, em português, Solução Automatizada de Identificação Biométrica), o programa recém adquirido pela PF serve para criar uma base nacional que facilite a busca por suspeitos e foragidos da Justiça. Ele será capaz de cruzar dados biométricos, como impressões digitais e imagens de câmeras de reconhecimento facial, de 50 milhões de brasileiros nos próximos 48 meses.
O novo sistema vai substituir o Afis (Sistema Automatizado de Identificação de Impressões Digitais), que a PF já usa há 16 anos, basicamente, para resolver crimes, achar pessoas desaparecidas, identificar corpos ou ajudar na troca de informações internacionais. Então, logo de cara, a ferramenta será abastecida com 22,2 milhões de digitais. Depois que alcançar o limite de 50,25 milhões de pessoas cadastradas, poderá ser expandido para que chegue a 200 milhões — quase a totalidade da população brasileira, hoje na casa dos 211 milhões.
Segundo o Rafael Zanatta, diretor do Data Privacy Brasil, o anúncio preocupa, porque não foi informado se esse cruzamento de dados gigantesco será usado apenas para resolução de crimes.
Por e-mail, a Polícia Federal afirmou que o Abis "será utilizado por servidores da Polícia Federal e dos Institutos de Identificação dos Estados que optem por utilizar a ferramenta".
Outro ponto tem relação com a desconfiança do princípio que esse tipo de tecnologia, especialmente a de reconhecimento facial, possui evidentes aspectos discriminatórios. Há um intenso debate em diversos países no mundo sobre os comportamentos racistas e machistas dos algoritmos e sobre o fortalecimento de sistemas autoritários que abusam da vigilância.
Resolução de crimes ou perseguição?
A integração de dados para uma investigação é claramente relevante. Por unir biometria e reconhecimento facial, o sistema consegue mais velozmente identificar um suspeito por meio de uma imagem de câmera de segurança associada a uma localização. O problema é que, no Brasil, inteligência e segurança pública são feitos sob o mesmo guarda-chuva, lembra Zanatta.
O governo Bolsonaro uniu o Ministério da Justiça com o Ministério da Segurança Pública formando o Ministério da Justiça e Segurança Pública. Assim, segundo o especialista, é fundamental que o acesso a informações integradas seja restrito apenas a investigações em curso.
Se o sistema permite que outros órgãos, como a Abin [Agência Brasileira de Inteligência] ou a Seopi [Secretaria de Operações Integradas], acessem essas informações, é ilícito"
O acesso de órgãos de inteligência a essas informações poderia, por exemplo, facilitar a identificação de pessoas que se opõe ao governo. Em tese, com o Abis, seria possível identificar pessoas em um protesto a partir de fotografias do local e aumentar o risco de eventuais usos da tecnologia para vigilância.
Para o Data Privacy Brasil, a tecnologia ainda não deve ser usada até que haja uma delimitação de como o sistema será usado.
"O governo deveria esperar um relatório da ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados) com um estudo dos detalhes técnicos e para entender o impacto que este cruzamento de dados pode trazer", diz Zanatta.
Em resposta a isso, a PF informou a Tilt que "com o contrato assinado, inicia-se o detalhamento dos fluxos de dados, a implementação e personalização dos softwares às necessidades da Polícia Federal". O órgão diz que o sistema ainda não foi implementado.
A LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) não se aplica a casos de segurança pública, mas dados coletados para este fim devem ser usados de forma delimitada. Consultada sobre essas preocupações, a Polícia Federal ainda não se pronunciou.
Algoritmos que erram muito
O alto índice de erros e comportamentos discriminatórios induzidos pelo uso da inteligência artificial é outro fator preocupante. Sistemas de reconhecimento facial já foram usados para justificar a prisão de homens negros que, mais tarde, foram considerados inocentes e sequer tinham relação com o crime investigado.
Segundo pesquisadoras ouvidas por Tilt para o documentário "Algoritmos racistas" (abaixo), isso acontece porque as tecnologias reproduzem as falhas do comportamento social vigente.
"As tecnologias não são neutras porque foram construídas dentro de um contexto social e expostas a ele", afirma a advogada Ana Carolina Lima, membro do AqualtuneLab, coletivo jurídico que atua dentro das áreas do direito, tecnologia e raça.
O enviesamento de dados é outro agravante. Mais de 2.400 professores, pesquisadores e estudantes fizeram um abaixo-assinado contra um sistema criado nos Estados Unidos para descobrir a probabilidade de pessoas cometerem crimes a partir do cruzamento de informações biométricas do rosto e de fichas criminais. Como a tecnologia se alimentou de dados de criminalidade racialmente carregados, ela pode legitimar a violência contra grupos marginalizados.
Aqui no Brasil, apesar de o banco parecer ter usos bem problemáticos e também promissores, especialistas da área de segurança pública, que falaram a Tilt sob condição de anonimato, acreditam que o sistema ainda deixa a desejar. Faltam dados que alimentem bancos estaduais, dizem.
A crítica principal é para a ausência de um sistema que integre informações de vários locais do Brasil —há estados com bancos de dados próprios, que não conversam com o de outros, e há regiões que sequer possuem registros biométricos cadastrados.
Ao que parece, dizem os ouvidos, a base nacional de dados servirá para que os Estados façam consultas.
O que esperar do futuro?
Junto com o anúncio da ferramenta, a PF informou que papiloscopistas federais (profissionais especializados em identificação humana por impressão digital) receberão um dispositivo portátil do Abis, ligado ao sistema central, para análise rápida de vestígios deixados em cenas de crimes.
O órgão também comprou equipamentos para cadastrar biometria de suspeitos, e dispositivos móveis para coleta, verificação e identificação de biometria.
A aquisição do Abis — oferecido pelo consórcio Iafis Brasil e a Idemia, empresas que fornecem soluções de identificação — é fruto de uma parceria da Polícia Federal com o Ministério da Justiça e Segurança Pública junto com os Estados.
As forças policiais esperam, num futuro próximo, que haja integração com outros modelos de identificação biométrica, como íris e voz. A Polícia Federal não forneceu mais detalhes de como vai ser dar o processo.
*Com agências e reportagem especial de Bruna Souza Cruz
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