Sementes rastreadas: como a tecnologia ajuda a combater pirataria no campo
Com um corvo no ombro, chapéu e tapa-olho de pirata, um espantalho ergue os braços e abre um sorriso macabro em uma lavoura cercada de espécies natimortas. Sombras e nuvens dão o tom da campanha, lançada recentemente pela Abrasem (Associação Brasileira de Sementes e Mudas). O que parecia cartaz do filme "Colheita Maldita" era uma referência a uma prática que se alastra como praga pelo campo: o uso de sementes piratas que, segundo a entidade, aumenta a incidência de doenças, de insetos, do custo de produção e de defensivos agrícolas.
Com um mercado cada vez mais competitivo, e todos os olhos do mundo sobre o que acontece no país, produtores encontraram na tecnologia uma arma para driblar a pirataria —e, claro, problemas com a Justiça. A venda de semente pirata ou sem origem comprovada é alvo de fiscalização recorrente do Ministério da Agricultura, que só em uma ação, realizada em 2020, apreendeu 2.700 toneladas de sementes pirata de soja em um terreno irregular de Campo Verde (MT).
A Abrasem estima que quase 30% das sementes plantadas no Brasil são falsificadas —índice que chega a 90% no caso do feijão. Os prejuízos causados por elas passam de R$ 2 bilhões ao ano.
Combate está no rastreamento
A pirataria levou o Ibrafe (Instituto Brasileiro de Feijão) a anunciar, em maio deste ano, uma parceria com uma empresa que no Brasil possui os direitos de uma tecnologia suíça de identificação, autenticação e rastreamento de produtos. A ideia, segundo o presidente do instituto, Marcelo Eduardo Lüders, é se antecipar a questionamentos cada vez mais recorrentes do mercado internacional.
"Em nosso setor, à medida que começa a incomodar países tradicionais, é provável que surjam reações, como suspeitas de que os produtos estejam saindo da Amazônia, usem mão de obra infantil ou utilizem defensivos não recomendados. Se não tiver rastreamento, vai ser cada vez mais difícil embarcar nos portos brasileiros", afirma Lüders.
O rastreamento funciona assim: com um aplicativo, o produtor pode conferir a procedência de sementes cadastradas e etiquetadas com um código antifraude e um registro de destinação. Essas etiquetas de segurança são afixadas nas sacarias e bigbags e podem ser acompanhadas por transportadores, distribuidores e revendedores.
A Ceptis, empresa desenvolvedora do programa, já registrou até o momento mais de 860 downloads do app do programa, batizado de "Semente Legal". A plataforma também ajuda a medir, com ajuda de satélite e sensores, a sustentabilidade do processo produtivo com uma ferramenta de análise de critérios econômicos, sociais e ambientais chamada "TrustScore".
A parceria ampliou para os produtores de feijão e outras leguminosas, como ervilhas secas, grão-de-bico e lentilhas, o que inicialmente atendia o mercado de sementes forrageiras, como são conhecidas as sementes usadas no plantio de pastagem de gado de corte leiteiro.
A tecnologia tem causado um efeito-dominó na área rural, segundo Roberto Miyamo, responsável pela área de pesquisa e desenvolvimento da Ceptis Agro. "Com uma pastagem de melhor qualidade, o rebanho passa a ser mais produtivo. Consequentemente, o comércio é fortalecido com mais produtos disponibilizados", explica.
Por enquanto, programas do tipo têm como público-alvo os vendedores e produtores. Mas não devem demorar para conectar os produtos aos consumidores. "As pessoas têm interesse em saber que garantias você tem daquele produto. É uma exigência. Hoje as redes de supermercado já privilegiam nas gôndolas os produtos com origem (certificada)", diz o presidente do Ibrafe, para quem a tecnologia tende a garantir a segurança para investimentos no setor.
Antes de chegar ao app, a produção de uma "semente legal" exige uma série de procedimentos e manejo de tecnologias.
Segundo os engenheiros agrônomos Augusto Goulart, José de Barros França-Neto e Francisco Krzyzanowski, da Embrapa, no caso da soja, por exemplo, as tecnologias de produção de sementes de alta qualidade fisiológica exigem locais de altitudes elevadas, acima de 750 metros de região tropical e subtropical e uma temperatura média de 22ºC. Isso sem contar o controle de plantas daninhas e da pureza varietal (qualidade genética) —o que pode ser comprometido devido à falta de limpeza das colhedoras e dos caminhões de transporte, sem contar os danos mecânicos causados pelo sistema de trilhas mal reguladas.
Lavouras de soja com sementes de alto vigor possuem produtividades de 10% a 15% maiores. Por isso empresas de pesquisa como a Embrapa desenvolvem programas de conscientização, com palestras, treinamentos e transferência de tecnologia, para o uso de sementes certificadas.
Do cacau até o boi
As tecnologias de rastreamento já são realidade também em outros campos. Produtores de café e até de cacau já contam com sistemas do tipo blockchain (uma espécie de livro contábil digital em que as transações são autenticadas — ficou famoso com a criptomoeda bitcoin) para acompanhar a origem e padrões de qualidade. No caso do cacau, uma parceria entre produtores do Sul da Bahia e a Bleu Empreendimentos Digitais desenvolveu um programa que em breve poderá ser baixado por produtores nas lojas virtuais de aplicativos.
Há plataformas online também voltadas para pecuaristas, como o DataBoi, usado para compra e venda de gado que identifica o boi via inteligência artificial. Segundo Floriano Varejão, presidente-executivo da startup, o programa possui um algoritmo de reconhecimento facial com 95% de eficácia que permite identificar o boi através do smartphone. A foto serve como uma espécie de CPF que pode acompanhar o bovino até o frigorífico.
Em breve, espera Varejão, consumidores de supermercado também poderão atestar a origem da carne com um QR Code e garantir que ele não esteja comprando produto de área de desmatamento.
Hoje o foco do app são bancos e seguradoras interessados em monitorar os animais para saber onde e como ocorreram eventuais acidentes. Com o app, técnicas rudimentares de marcação que pouco evoluíram nos últimos anos, com ferro e queima do couro do animal, estão com os dias contados, segundo o empresário.
Atualmente, segundo ele, as tecnologias de reconhecimento facial já são usadas, pelo mundo, para identificação de animais como porcos, aves e até salmão. "O rastreamento vai ser cada vez mais um divisor de água para fazendeiros e para quem mais quiser usar", diz Varejão.
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