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Esquecido pelos EUA, banco de dados de afegãos vira arma na mão do Talibã

Integrantes do Talibã fazem patrulha nas ruas de Herat - Stringer/Reuters
Integrantes do Talibã fazem patrulha nas ruas de Herat Imagem: Stringer/Reuters

Aurélio Araújo

Colaboração para Tilt, em São Paulo

02/09/2021 10h39

O retorno do Talibã ao poder no Afeganistão levantou um novo debate sobre segurança e tecnologia. Bases de dados pessoais sensíveis deixadas para trás pelos Estados Unidos e pelo governo do Afeganistão após o país ser dominado pelo grupo fundamentalista podem ser usadas para perseguir cidadãos afegãos que colaboraram com os americanos.

O alerta foi dado pelos técnicos que criaram o sistema APPS (sigla em inglês para Sistema Afegão de Pessoal e de Pagamento), usado por anos por dois órgãos bastante importantes do governo anterior do Afeganistão: os Ministérios do Interior e da Defesa, responsáveis respectivamente pela polícia e pelas forças armadas locais.

Desenvolvido para evitar corrupção de beneficiários fantasmas — ou seja, evitar que pessoas com identidades falsas recebessem dinheiro de forma fraudulenta —, ele contém dados biométricos de afegãos que colaboraram com a ocupação dos EUA no país. Assim, essas pessoas podem se tornar alvos fáceis do Taleban, que tem no APPS uma tecnologia para identificá-los.

Soldados fantasmas e biometria

Durante os 20 anos de presença americana no Afeganistão, os "soldados fantasmas" se tornaram um grande problema: eram nomes de pessoas que apareciam nos sistemas de pagamento do Exército afegão, mas que não exerciam os cargos para os quais estavam registrados. Dessa forma, o dinheiro era desviado para outras finalidades.

Para combater esse tipo de fraude, os EUA financiaram a criação do APPS, sistema que chegou a coletar dados de cerca de 500 mil afegãos que, em algum momento, atuaram na polícia e nas forças armadas.

Fontes ouvidas pela revista Technology Review, do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), que ajudaram a criar o APPS, afirmam que esses dados foram coletados desde o primeiro dia em que os afegãos se alistaram, e permanecem no sistema para sempre, independentemente de essas pessoas terem deixado as forças de segurança ou não.

Elas relatam ainda que não houve um planejamento do que fazer com a base de dados no caso de uma emergência — como, por exemplo, a retomada do controle do país pelo Talibã.

São ao menos 40 dados coletados sobre cada membro da polícia ou das forças armadas afegãs, desde nome, data e local de nascimento, até um número de identidade ligado a um perfil biométrico. Além disso, constam na base de dados também informações de terceiros, como nomes de pais, tios e avós dessas pessoas.

Perigos de represália

O grupo Talibã, que deseja ser reconhecido internacionalmente como líder legítimo do Afeganistão, tem prometido moderação nas suas ações. Uma das bases dessa promessa é dizer que não irá punir afegãos que colaboraram com o governo anterior ou com as forças de ocupação.

No entanto, essa atitude deve ser encarada com ceticismo: de acordo com a Anistia Internacional, em julho, o Talibã torturou e matou nove homens após tomar o poder na província de Ghazni. Eles foram selecionados depois que os perpetradores foram de porta em porta nas residências locais, "registrando" quem eram os indivíduos que estavam cooperando com as forças internacionais.

Suspeita-se até que o Talibã já tenha usado dados biométricos antes: em 2016, ao sequestrar um ônibus rumo à cidade de Kunduz, o grupo utilizou um equipamento que escaneava as digitais dos reféns. 12 pessoas foram assassinadas naquela ação. Não se sabe o que era ou como funcionava o dispositivo, que foi denunciado à polícia pelos sobreviventes do sequestro.

Quais dados são legítimos de coletar?

Algo que chama a atenção ainda é o fato de que dados aparentemente pouco úteis, como o vegetal e a fruta favorita de cada policial ou soldado, ajudam a compor a base de dados APPS. Não é claro o motivo desse tipo de dado ter sido coletado.

Porém, isso levanta outra discussão: se um sistema de informações é desenvolvido com um propósito específico, como evitar beneficiários fantasmas, até que ponto o Estado pode coletar informações sobre os cidadãos? Quais informações realmente vão ajudar nesse propósito, e quais são coletadas para servir a outros objetivos?

No caso do Afeganistão, as leis sobre privacidade eram inexistentes até muito tempo depois que o governo e os EUA começaram a reunir dados pessoais.

Embora pareça, essa não é uma questão limitada ao Afeganistão: diversos outros países também utilizam sistemas de biometria para evitar fraudes. Ouvida pelo Technology Review, Amba Kak, diretora de política global do instituto AI Now, órgão de pesquisa sobre inteligência artificial da Universidade Nova York, classificou o APPS como um projeto "em linha com outras experiências mundiais" com biometria.

"Identidade biométrica como o único meio eficiente de identificação legal é algo que tem falhas e é um pouco perigoso", afirmou Kak. Ela defende outras correções de brechas que permitam fraudes para substituir o uso de biometria.