Ciência em Matrix: o que temos de simulação, bateria humana e IA revoltada?
Para quem não conhece, a premissa do filme "Matrix", de 1999, é de que o mundo como o conhecemos hoje não passa de uma simulação de computador, criada por máquinas inteligentes que se rebelaram contra a humanidade para manter os seres humanos inertes enquanto seus corpos são usados como bateria para alimentar essas mesmas máquinas.
Com lançamento previsto para 22 de dezembro, o filme "Matrix Resurrections" chega aos cinemas brasileiros 19 anos depois do último capítulo da franquia e retoma alguns desses conceitos que marcaram gerações de fãs de ficção científica.
Mas, afinal, quão realista é a ciência descrita em "Matrix"? É possível enganar o cérebro humano com uma simulação tão perfeita quanto a do filme? O corpo humano é capaz de alimentar robôs como se fosse uma pilha? E quão longe estamos de uma inteligência artificial capaz de dar início a uma rebelião de máquinas?
Segundo professores ouvidos por Tilt, a realidade é bem mais complexa do que os filmes das irmãs Wachowski fazem parecer.
Mundo simulado
A ideia de que a realidade em que vivemos é uma simulação de computador encontra adeptos entre filósofos, cientistas e até empresários do Vale do Silício. Elon Musk, dono da SpaceX e da Tesla, por exemplo, acredita que há apenas uma chance em bilhões de que estejamos vivendo num mundo real.
Musk baseia suas ideias no discurso do filósofo sueco Nick Bostrom, da Universidade de Oxford, na Inglaterra, e do astrônomo americano David Kipping, da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos — este último já chegou a dizer que há 50% de chance de estarmos vivendo em uma simulação sem sabermos.
Criar um mundo virtual tão realista que pareça de verdade não é o desafio: videogames modernos são prova disso. Complicado mesmo é convencer o cérebro humano a aceitar essa simulação. É o que diz a neurocientista Myenne Tsutsumi, doutoranda em análise do comportamento e professora da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná).
Segundo ela, até dá para enganar o cérebro e induzi-lo a ter alucinações, com direito a sensações artificiais de todos os cinco sentidos, do olfato ao paladar, só com alguns estímulos elétricos nos lugares certos do cérebro. "O que não conseguimos é produzir o conteúdo das alucinações", diz.
"Você pode estimular uma área relacionada com o paladar, por exemplo, e o paciente relatar que está sentindo um gosto específico. Mas não consigo 'colocar' o paciente, somente com a estimulação, para sentir que ele está andando por um restaurante, sentando-se, comendo uma comida e sentindo aquele gosto."
A razão para isso é simples: o cérebro humano não cria alucinações da mesma maneira que uma placa de vídeo renderiza o cenário virtual de um jogo. E mesmo que fosse possível, não dá para enfiar uma câmera na nossa cabeça e ter certeza de que a simulação rodando ali está correta.
"Nós, neurocientistas, conseguimos saber, por meio dos instrumentos de avaliação de atividade cerebral, que o paciente está pensando, está sentindo, mas não conseguimos dizer exatamente o que está sentindo e no que está pensando. Essa resposta somente o paciente consegue nos dizer. Ou seja, também depende de como ele consegue relatar o que ele está sentindo e pensando", explica a especialista.
Baterias humanas
Em "Matrix", a guerra entre humanos e máquinas terminou quando a humanidade escureceu os céus para impedir que os robôs tivessem acesso à luz solar. Eles, então, passaram a usar corpos humanos como bateria. O personagem Morpheus (vivido por Laurence Fishburne) chega a dizer que produzimos "25 mil BTUs de calor corporal".
Mas, afinal, essa conta faz sentido ou é só bobagem de roteirista de Hollywood? Um pouco de cada. A sigla BTU significa "British Thermal Unit" (unidade térmica britânica) e, assim como os watts e joules, é uma unidade de medida de energia, mais comumente usada nos EUA e em aparelhos de ar condicionado.
Segundo John Paul Hempel Lima, coordenador do curso de inteligência artificial e dos cursos de engenharia da Fiap (Faculdade de Informática e Administração Paulista), o corpo humano produz, sim, energia suficiente para abastecer um dispositivo eletrônico. Mas depende do aparelho.
"O corpo humano dissipa entre 60 e 180W de potência térmica dependendo da atividade que está sendo feita. Se um dispositivo termoelétrico (que converte calor em eletricidade) conseguisse converter 1% dessa potência (entre 600mW e 1,8W) seria possível alimentar esse pequeno dispositivo."
Esses 180W se traduzem em cerca de 614 BTUs por hora. Ou seja, bem longe dos 25 mil BTUs citados por Morpheus. Esse volume poderia ajudar a ligar um relógio, por exemplo, mas não uma sentinela em formato de lula caçadora de rebeldes como as que vemos nos filmes.
"Quando pedalamos, por exemplo, estamos usando a energia do nosso corpo para movimentar a bicicleta. Poderíamos usar esse mesmo princípio para gerar energia elétrica, mas como dá para imaginar, essa energia não é tão grande para acionar grandes máquinas", diz Lima.
Rebelião das máquinas
Por fim, chegamos ao conceito que alimenta filmes, livros e séries de TV de ficção científica desde o princípio dos tempos. Já existem sistemas de inteligência artificial capazes de superar humanos em jogos de raciocínio e até se passar por pessoas de verdade. Quanto tempo falta para que eles se revoltem e tentem dominar o mundo?
Para o cientista cognitivo Diogo Cortiz, doutor em tecnologias da inteligência e professor de ciência da computação na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), ainda estamos longe de alcançar a tão falada singularidade — uma inteligência artificial que seja capaz de resolver qualquer problema, não só de assuntos específicos — e que seja capaz de refletir (e se revoltar) com sua condição.
"Se eu faço uma IA que joga xadrez, ela vai jogar xadrez muito bem. Mas ela não vai saber fazer tradução, por exemplo", explica Cortiz. "Mesmo essas IAs que escrevem texto, como a GPT-3, ou que conseguem entender linguagem, como a Alexa, são modelos estatísticos. Elas não têm um entendimento do mundo, um senso comum."
Mesmo que consigamos construir uma singularidade num futuro não tão distante, esta é só uma parte do problema. Para se rebelar contra os humanos, essa IA teria que não só resolver qualquer problema, mas ter consciência de si mesma e poder refletir sobre a sua condição.
A ciência ainda nem sabe direito como essa reflexão acontece no nosso cérebro humano e, por isso, não consegue reproduzi-la num cérebro artificial. Outro obstáculo é o de como abastecer uma máquina tão inteligente assim. Nesse ponto, segundo Cortiz, "Matrix" talvez esteja no caminho certo.
"Quando a gente pega um modelo de IA como a GPT-3, ela consome tanta energia com processadores e tal, que mesmo que a gente consiga criar uma super máquina, vai faltar energia. Aí talvez 'Matrix' faça sentido, do ponto de vista de buscar fontes alternativas. Não que a gente vá usar o corpo humano, mas um limitador acaba sendo o consumo de energia."
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