Mais desigualdade: como seria se a aula nunca mais voltasse ao presencial
Rodrigo Lara
Colaboração para Tilt, em São Paulo
26/10/2021 04h00
Estamos próximos de completar dois anos desde que a pandemia de covid-19 começou a afetar o mundo e, por tabela, mudou drasticamente a forma como vivemos. Além da inestimável perda de vidas, tivemos que lidar com o isolamento social e a sensação de vivermos sempre o mesmo dia.
Apesar de não serem os principais "alvos" da pandemia considerando a doença em si, as crianças e jovens também tiveram que lidar com um problema: o cancelamento das aulas presenciais e a consequente adoção, de forma improvisada na maioria das vezes, do ensino à distância.
Hoje, as escolas ensaiam uma retomada das aulas em classe — em São Paulo, a previsão é que isso ocorra de forma integral no início de novembro. E ainda que tudo indique que voltemos à normalidade neste sentido, cabe imaginar: como seria se as aulas nunca mais voltassem a ser presenciais?
A resposta é relativamente complexa, mas pode ser resumida da seguinte forma: isso não seria nada bom.
Estrutura desigual
Um dos primeiros problemas enfrentados pelos estudantes que passaram a ter aulas à distância foi relacionado à estrutura para isso. Ainda que estudos mostrem que 83% da população do país têm acesso à internet, entre as classes D e E apenas 64% das casas têm acesso à rede.
Considerando que as aulas à distância foram transmitidas pela internet, este simples dado já mostra que a pandemia gerou impactos distintos em crianças e jovens de acordo com sua classe social, gênero, raça, território e, claro, dependendo do tipo de escola em que estavam matriculados.
Neste cenário, acaba sendo natural que um aluno com conexão rápida em casa e matriculado em uma instituição de ensino bem estruturada e mais familiarizada com tecnologias digitais tenha um melhor acesso ao conteúdo programático do que crianças e jovens advindos de camadas sociais mais pobres que acabam tendo mais limitações para acessar esse tipo de conteúdo.
Como mostrado acima, os problemas decorrentes de uma educação exclusivamente à distância começam na estrutura desigual da nossa sociedade, mas não se limitam a isso. Aqui, há ao menos três outros pontos importantes a serem considerados: o aprendizado, em si, o impacto psicológico e, por fim, a questão social.
1. Índice de aprendizado continuaria caindo
Considerando a percepção de pais e responsáveis, 40% dos estudantes da educação básica não estão evoluindo. O dado vem de uma série de pesquisas Datafolha encomendadas pela Fundação Lemann, o Itaú Social e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Os levantamentos ouviram, durante vários momentos da pandemia, responsáveis por crianças e adolescentes em idade escolar e com histórico de estudo em escola pública.
Dentre eles, 69% relatam que os estudantes têm dificuldade para manter uma rotina no contexto de aulas remotas, sendo que esta questão se mostrou mais séria entre as crianças matriculadas do 1º ao 5º ano do ensino fundamental.
Comparando com a mesma pesquisa em 2020, essa percepção foi de 58% para 69% em nível nacional, sendo que ela teve um aumento mais acentuado dentre as pessoas ouvidas da região Nordeste do país (de 58% para 74%).
Com isso, a percepção dos pais sobre o desempenho dos filhos também mudou. A pesquisa aponta que 86% deles entendem que os filhos eram ótimos ou bons na escola antes da pandemia, número que cai para 59% se considerado o período pandêmico e com aulas à distância.
Aqui, novamente as desigualdades históricas do Brasil acabam entrando em cena. No Nordeste, 28% dos familiares relatam que as crianças desaprenderam nesse período, enquanto no Sul esse número é de 17%.
Considerando o quanto se aprendeu de "coisas novas" durante a pandemia, a pesquisa aponta que 57% dos estudantes brancos tiveram esse tipo de experiência, percentual que cai para 41% entre os negros.
Um bom termômetro para sabermos, na prática, o quanto esse período afetou o aprendizado será na média de proficiência do Enem 2021, que acontecerá nos dias 21 e 28 de novembro. Não seria surpresa, porém, se ela fosse menor do que a prova de 2020.
2. Ainda menos motivação
A mudança para aulas à distância também causou impactos psicológicos nos alunos, sendo mudanças de comportamento e falta de motivação dois dos sintomas mais percebidos. Ainda considerando a pesquisa, 94% dos entrevistados relataram que as crianças ou adolescentes tiveram alguma mudança de comportamento durante a pandemia.
Essas mudanças são variadas e incluem ganho de peso no período (56%), tristeza (44%), medo (38%), falta de interesse pela escola (34%), dificuldade para dormir (23%) e ocorrência de problemas de saúde (12%). Os números aumentam quando o recorte inclui apenas crianças e jovens que moram em lares cuja renda é de até dois salários mínimos (R$ 2.200).
Comparando alunos que já voltaram às aulas presenciais com aqueles que ainda estão exclusivamente em ambiente online, 51% dos que estão indo à escola se sentem desmotivados, número que sobe para 58% dentre aqueles que ainda aprendem à distância.
Ao mesmo tempo, 87% dos que voltaram ao ambiente da instituição de ensino se dizem mais animados, 80% se sentem mais otimistas e 85% mais interessados.
Um dos maiores riscos aqui, considerando os efeitos psicológicos e outras questões como a falta de comida em casa — já que não há acesso à merenda —, é a possibilidade de se largar os estudos. Essa saída foi sinalizada por 40% dos entrevistados.
3. Socialização faz falta
Também é importante lembrar que, além de um espaço de aprendizado, a escola também é um local importante para a socialização das crianças e adolescentes. Interações e brincadeiras, que normalmente ocorrem em situações presenciais, são impossíveis de serem replicadas à distância.
Além disso, a falta de contato acaba minando a relação entre alunos e professores e não há tecnologia que substitua a experiência em sala de aula.
Mais do que o aprendizado em si, não ter contato com o outro no ambiente escolar tende a afetar as habilidades sociais, já que há menos contato com questões fundamentais, como respeito, criação de laços e noções de limites, atitudes e consequências, o que pode influenciar negativamente o desenvolvimento enquanto seres humanos.
Resultado: é melhor que não exista algo 100% virtual
Diante desses dados, não é difícil concluir que um futuro no qual as aulas se mantivessem totalmente à distância traria consequências negativas como um todo.
Além da dificuldade de aprendizado inerente ao formato, a desmotivação certamente afetaria os índices de educação do país.
Isso, no entanto, não quer dizer que a tecnologia não pode ser aliada dos estudantes. Um formato híbrido, no qual há uma mescla entre atividades presenciais e outras que envolvam recursos tecnológicos seria um exemplo de como usar ferramentas modernas para aprimorar o ensino.
O maior desafio nesse caso será adotar estratégias e políticas públicas para que o abismo entre estudantes mais pobres e mais ricos não seja ainda mais potencializado. A tecnologia pode trabalhar muito bem a nosso favor, mas é preciso fazer um bom planejamento para o seu bom uso.
Fontes:
Waldete Tristão, pedagoga, doutora em Educação pela USP, mestre em Educação pela PUC-SP e membro da equipe de Educação do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT)
Lucas Rocha, gerente de inovação da Fundação Lemann