Sem 4G: dados limitados tiram acesso dos mais pobres a benefícios sociais
A dona de casa Jaciane dos Santos, 25, é beneficiária do Bolsa Família e precisa às vezes atualizar o seu cadastro pelo aplicativo do programa ou acessar o Caixa Tem, app usado para permitir as operações financeiras. Mas ela nem sempre consegue por não ter internet em casa. O único acesso ao ambiente online é através dos pacotes de franquia pré-pago pelo celular, que consomem muitos dados e rendem pouco, segundo ela.
Quando a internet acaba no meio do mês ou o dinheiro para recarregar o celular falta, Jaciane fica "desconectada" do mundo. Ela quase teve seu benefício cortado pela dificuldade em atualizar o cadastro.
"Quando tenho dinheiro, coloco R$ 10 de crédito, que tem validade de sete dias. Mas o pacote [de dados] sempre acaba antes porque qualquer aplicativo consome 'muita internet'. Por isso, evito usar outros apps e uso mais Facebook e WhatsApp [que algumas operadoras oferecem acesso ilimitado]", diz a dona de casa, que tem dois filhos e é moradora da comunidade Caranguejo Tabaiares, na área central do Recife.
Jaciane não está só. Ela faz parte de uma grande parcela de brasileiros que até tem celular, mas o uso da internet não é constante pela falta de verba para pagar pelo serviço e por bloqueios na conexão quando o pacote de dados chega ao fim. É o que mostra o estudo "Barreiras e limitações no acesso à internet e hábitos de uso e navegação na rede nas classes C, D e E", realizada pelo Instituto Locomotiva a pedido do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).
Segundo o levantamento, 9 em cada 10 pessoas entrevistadas entram na internet principalmente pelo celular. Dos mil participantes ouvidos, 28% deixaram de receber algum benefício do governo, como o Bolsa Família ou Auxílio Emergencial, devido às restrições na franquia de dados do celular. Entre os entrevistados, 45% disseram que o pacote de dados terminou antes do fim do mês. Ou seja, uma média de uma a cada quatro pessoas foram privadas de um direito pela falta de internet.
"Com essa pesquisa, quisemos ampliar a concepção sobre a importância da internet, trazendo dados empíricos sobre como as desigualdades sociais também são perpetuadas através das redes e afetam a população mais pobre", afirma a advogada e pesquisadora do programa de Telecomunicações e Direitos Digitais do Idec, Camila Leite Contri.
Metade dos entrevistados também afirmou que deixou de fazer alguma transação financeira ou ter algum acesso a serviço de saúde (40%) para "economizar" a franquia de dados. É o que os especialistas chamam de autoprivação no consumo da internet móvel, e que atinge especialmente pessoas pobres, negras, com baixa escolaridade e que utilizam serviços de telefonia pré-paga.
A comunicadora autônoma Daniele Lins da Paixão, 35, é mais uma brasileira que tem dificuldades em acessar serviços oferecidos na internet. Ela não tem wi-fi em casa e precisa da rede móvel para realizar suas operações financeiras.
"Meu filho trabalha com o Mercado Pago [plataforma de pagamentos móveis] e, quando vai chegando no meio do mês, a internet do celular vai acabando. A gente deixa de usar alguns aplicativos para durar mais, porque já chegamos a passar quatro meses sem internet por falta de dinheiro", conta a moradora da Comunidade Caranguejo Tabaiares, no Recife. Nessas horas, o jeito é recorrer ao wi-fi dos vizinhos —quando é possível.
Segundo a pesquisa, 74% dos entrevistados acessam a internet somente onde tem wi-fi para economizar seu pacote de dados.
Contri lembra que o recorte da pesquisa foi com pessoas que já possuem aparelho celular e internet móvel, mas de baixa qualidade. O que mostra que a realidade da falta de acesso à rede e, consequentemente, a direitos básicos, é ainda pior se o espectro for ampliado a pessoas sem telefone móvel ou sem sinal de internet.
"Antes tínhamos a concepção de que a internet era lazer, mas ela é um meio de fruição de direitos fundamentais. Precisamos discutir a internet e as políticas públicas a partir dessa perspectiva", diz.
Limitação do modelo de franquia móvel
O levantamento indica ainda que o atual modelo de negócios da internet móvel por franquia de dados é o principal limitador no acesso dos brasileiros das classes C, D e E a serviços de cidadania disponíveis na rede.
Para advogada Flávia Lefèvre, do Intervozes Coletivo Brasil de Comunicação Social, que integra a Coalizão Direitos na Rede, é um modelo que viola o Marco Civil da Internet, lei que estabelece a internet como serviço essencial para o exercício da cidadania e que deve estar disponível a todos. "A internet só pode ser cortada por falta de pagamento", destaca.
"Os planos com franquias penalizam a população mais pobre. Não podem ser considerados um acesso à internet, porque quando acaba a franquia, a pessoa só tem acesso ao WhatsApp e ao Facebook. A pesquisa do Idec expõe é que as pessoas não têm acesso à internet de fato. Nós defendemos que os modelos de franquia sejam proibidos no Brasil", afirma Lefèvre.
A proposta de entidades da sociedade civil e do Idec é de que o modelo de internet móvel adotado no Brasil seja semelhante ao da banda larga para wi-fi. Ou seja, que as empresas cobrem por velocidade e garanta o acesso à internet durante todo o mês.
"Neste modelo, a pessoa paga por velocidade. Ela pode ter eventualmente uma velocidade reduzida mas não a interrupção do serviço", diz a advogada do Intervozes.
A Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) informou, em nota, que "não há previsão de revisão regulatória na agenda da Anatel" sobre a mudança no modelo de franquias para internet móvel no país.
Nathalia Foditsch, especialista sênior da Aliança para a Internet Acessível da Web Foundation (A4AI), afirma que o Brasil possui, há 20 anos, o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), recursos públicos pagos pelos brasileiros, mas que estão contingenciados.
O Fundo foi criado com o objetivo de financiar a instalação de telefones e outros serviços de telecomunicações em comunidades distantes ou mais pobres, onde a iniciativa privada não tem interesse em investir, por exemplo, com o propósito de democratizar o acesso especialmente à internet.
"Recentemente, com mudanças legislativas e regulatórias, ao que tudo indica esse dinheiro poderá ser usado para a banda larga. Nós esperamos que ele seja aplicado para beneficiar quem mais precisa dessa conectividade, que são as populações em áreas remotas e também as populações com níveis de renda mais baixos", ressalta Foditsch.
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