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Privatização Dataprev: chance de perder dados preocupa, dizem especialistas

Fachada do predio do Dataprev, da Previdencia Social - Leonardo Wen/Folha Imagem
Fachada do predio do Dataprev, da Previdencia Social Imagem: Leonardo Wen/Folha Imagem

Colaboração para Tilt, do Recife

16/12/2021 04h00

A migração de serviços públicos para o ambiente digital avança no Brasil, mas questões ligadas à falta de planejamento e gestão de riscos (como ataques cibernéticos) já foram apontadas por auditores do TCU (Tribunal de Contas da União) como pontos de alerta. E essas não são as únicas questões envolvendo sistemas digitais do governo.

A possibilidade de venda do Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados) e da Dataprev (Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social) para a iniciativa privada preocupa especialistas em direito, tecnologia e ciência de dados. Segundo fontes ouvidas por Tilt, há temores de que o processo coloque em risco a privacidade de brasileiros e a proteção dos dados armazenados por elas.

Em um cenário mais grave, dizem, existe o medo de que o país passe por períodos de apagão de dados, com informações se tornando imprecisas e com chances de que partes do histórico da vida de milhares de pessoas deixe de existir digitalmente.

A possibilidade de venda das empresas públicas se tornou mais real com a inclusão das duas no PND (Programa Nacional de Desestatização), em janeiro de 2020. O Ministério Público Federal chegou a divulgar uma nota neste ano dizendo que a privatização do Serpro contraria a legislação e ameaça a segurança nacional.

Funcionários das duas estatais criaram uma campanha contra a privatização chamada "Salve seus Dados", que tem apoio de entidades como Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), SBC (Sociedade Brasileira de Computação) e CUT (Central Única dos Trabalhadores).

Entendendo os possíveis riscos

Entre as duas empresas, o Serpro cumpre papel mais crítico por ser responsável por um número maior de sistemas, administrando todas as informações sobre a União e gerindo dados do CPF nas pessoas no Brasil.

O Serpro cuida também das informações da Receita Federal e dos CNPJs de empresas. Além disso, desenvolve e implementa soluções de tecnologias usadas por serviços de diversos órgãos públicos federais, estaduais e municipais, inclusive para departamentos militares.

A Dataprev é vinculada ao Ministério da Economia e administra 35 milhões de benefícios previdenciários, segundo informações da própria empresa. Ela também é responsável pela aplicação online que faz a liberação de seguro-desemprego

Segundo o diretor do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), Fausto Augusto Junior, a privatização das duas pode afetar processos envolvendo dados de aposentadorias e emissão de passaportes. Se um dado some, uma pessoa pode até "deixar de existir".

"Imagine o desespero de muitos trabalhadores se algumas dessas empresas vierem a passar por um processo de sobrepreço, fraude, vazamento, fusão ou falência. As chances de perder ou modificar os dados são muitas", afirma Augusto Junior.

Um precedente malsucedido, segundo o diretor, foi a venda da estatal Datamec, de processamento de dados da Caixa Econômica Federal, para a Unisys, a partir de 1999.

Além de trabalhar com uma tecnologia de propriedade exclusiva da companhia, o que gerou uma dependência tecnológica e operacional do país em relação à Unisys, as relações ficaram estremecidas quando a compradora começou a praticar preços abusivos para administrar os sistemas do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego), lembra Augusto Junior.

O contrato foi suspenso e a Unisys passou a condicionar a transferência dos dados à Dataprev.

De acordo com o diretor do Dieese, informações de brasileiros foram perdidas naquela época. O processo de transferência e migração dos sistemas durou mais de seis anos. "Foi uma privatização que causou muitos problemas à população em geral. O próprio acesso aos dados foi dificultado."

Para ele, com dados sob custódia de uma empresa privada, o governo não tem o controle sobre vazamentos localizados estratégicos, a partir do interesse de outras nações. "O Brasil viverá sob uma eterna ameaça", diz.

Falta de transparência

Em julho deste ano, a Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa, que desenvolve trabalhos sobre proteção de dados, publicou o artigo "Desafios Jurídicos e Regulatórios da Privatização do Serpro", do professor de direito econômico da USP (Universidade de São Paulo) Diogo Coutinho.

O material traz uma análise detalhada sobre outros problemas envolvidos na privatização do Serpro.

"O Serpro é uma instituição complexa, que presta serviços para diferentes órgãos, diferentes entes da federação, inclusive para empresas particulares. E falta transparência sobre quais são as bases de dados que o Serpro controla, como as informações são coletadas e o que a empresa faz com esses dados", afirma a pesquisadora da entidade Izabel Nuñez.

"Como vai privatizar uma estatal sem essa transparência? E como precificar esses bancos de dados e o trabalho que o Serpro presta na definição e execução de políticas públicas", questiona.

Para ela, é preciso que a ANPD (Agência Nacional de Proteção de Dados), criada para fiscalizar a aplicação da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) no Brasil, seja mais atuante neste momento.

"É papel da ANPD detalhar os procedimentos sobre o compartilhamento de dados do poder público e do poder privado e fazer esse tipo de delimitação. Ela não pode ser omissa numa situação de privatização de órgãos tão estratégicos para o país", diz Nuñez.

Ela acrescenta que a própria Constituição brasileira proíbe concessões a empresas privadas de órgãos públicos que lidem com aspectos da intimidade dos cidadãos brasileiros, obrigando o Estado a cuidar de tais informações.

A reportagem entrou em contato com o gabinete e a equipe de comunicação da SEDDM (Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercado) do Ministério da Economia, mas não obteve resposta. Também questionou a assessoria de imprensa do Ministério da Economia, sem retorno.

Discussão no Congresso

A expectativa do governo é de que as vendas do Serpro e da Dataprev aconteçam em 2023. Até lá será preciso que propostas sejam discutidas e aprovadas na Câmara dos Deputados e no Senado. Mas até agora não ficou definido parâmetros do modelo de privatização que pretende adotar.

Em outubro deste ano, a Comissão de Finanças e Tributação da Câmara manteve a permissão de desestatização da Dataprev ao rejeitar um projeto de decreto legislativo que buscava impedir o processo. A proposta ainda deve passar pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, segundo informações da Casa.

O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) é o responsável por analisar estudos de viabilidade da venda das estatais.

De acordo com o Diesse, Data Privacy Brasil e Ministério Público Federal, as duas empresas públicas apresentam resultados financeiros positivos e o governo ainda não foi capaz de oferecer uma justificativa robusta sobre as necessidades e ganhos de privatizar o Serpro e a Dataprev.

"Estamos abrindo processo de audiências públicas para que o tema seja debatido e articulado com organizações da sociedade civil. As pessoas têm o direito de saber sobre os perigos que estão correndo com essas privatizações", disse o deputado Carlos Veras (PT-PE), da Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público.