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Selfie virou gesto político, mudou a arte e nossa relação com a tecnologia

Foto de jovens de costas para Hilary Clinton para fazer selfie com a então candidata à presidência dos EUA em 2016, é exemplo da função política da selfie, diz estudo da USP - Barbara Kinney / Campanha Hillary for America
Foto de jovens de costas para Hilary Clinton para fazer selfie com a então candidata à presidência dos EUA em 2016, é exemplo da função política da selfie, diz estudo da USP Imagem: Barbara Kinney / Campanha Hillary for America

Margareth Artur

Jornal da USP

10/01/2022 04h00

Quem é o autor de um autorretrato? Um pintor, um desenhista, um fotógrafo? Sim, qualquer um deles desempenha essa tarefa. O ato de fotografar a si mesmo, neste século, não é conhecido por autorretrato, e sim por selfie, uma palavra inglesa que significa, amplamente, hoje, fotografar a si mesmo usando um celular, com o objetivo de a imagem ser divulgada em qualquer rede social conhecida.

É moda, muitos amam as selfies. Elas registram momentos felizes, ou aparentemente felizes, de uma pessoa ou desta com grupos. A selfie pode registrar ou se tornar um instrumento de marketing, de vendas, fonte para angariar simpatias sociais, culturais ou políticas.

O sujeito registra, na selfie, seu rosto, sua presença, seu apoio, suas ideias, seu status, sua adesão a qualquer objetivo, seja a foto solitária de si mesmo ou acompanhado de quem ou para o que ele quer chamar a atenção.

Paula Braga, autora de artigo da revista Ars, recém-publicada, trata do assunto "selfies" nas redes sociais como um "novo capítulo na história da fotografia", que demanda um estudo multidisciplinar, abrangendo as visões artísticas, psicológicas, filosóficas, sociais e políticas.

De acordo com a autora, as redes sociais se mostram como palcos em que os atores são tanto amadores como profissionais, ressaltando que não se pode esquecer que também são "campos de experimentação artística".

Esse é o tema a ser analisado pela autora nas obras de Amalia Ulman, artista argentina, Aleta Valente, artista visual brasileira, e Cindy Sherman, fotógrafa americana, visto que as obras e estudos dessas artistas expõem os limites das redes sociais como lugar de circulação da obra de arte.

Não se pode esquecer a interferência das redes sociais no processo democrático e nas questões subjetivas, na medida em que o capitalismo se utiliza de fake news para disseminar ideologias, conceitos e impelir comportamentos contrários à liberdade de opinião e expressão.

Paula Braga se refere à selfie como "auto-objetificação", a partir do estudo da fotografia pelo professor francês Philippe Dubois, também pondo em pauta a reflexão sobre o tema a partir de conceitos da psicanálise de Achille Mbembe, filósofo e historiador camaronês, e Giorgio Agamben, filósofo italiano, "sobre os efeitos do capitalismo avançado na subjetividade".

O artigo aborda o significado da selfie no contexto da teoria da fotografia, direcionando o foco na maneira em que ela se revela como o espelho do sujeito contemporâneo.

Para a autora, a selfie é um "autorretrato feito por tecnologia digital e colocado para circular em redes sociais", servindo para divulgação de propagandas de todos os tipos, principalmente por estratégias nada éticas, eleitorais, em uma clara manipulação que permite às redes sociais agirem no controle de massa e minando "projetos políticos voltados ao coletivo".

Como exemplo da selfie e seu poder midiático político, cita-se o momento em que jovens "fazem selfies" de si próprios durante a campanha presidencial de Hillary Clinton, em 2016, tendo eles como companhia, nas fotos, a própria candidata que acena para todos, em destaque. Curioso é que, ao fazerem as selfies, os jovens "dão as costas" para Hillary.

O fato significa um retrato do narcisismo contemporâneo de ambos os lados ou estamos falando de uma "massa narcísica, ou uma massa cujo narcisismo é comandado por um político?", questiona a autora.

No intuito de entender a relação entre o espectador, o sujeito e sua imagem, Paula Braga traz para o estudo um mito da mitologia grega, Narciso, que se apaixona pela própria imagem refletida em um espelho d'água, alienando-se do mundo exterior e autodestruindo-se.

Na comparação desse mito com a complexidade que envolve as selfies, conclui-se que o desejo do espectador pela imagem é claro: "Assim, como Narciso, pensamos que estamos vendo um outro, mas o que nos enamora, em qualquer imagem, é o reflexo de nós mesmos, é a nossa entrada em cena como protagonistas da pragmática da representação".

O artigo nos apresenta a relação entre a selfie e o sujeito contemporâneo e como um fenômeno tecnológico, mas sobretudo como um produto a ser vendido nas redes sociais, um atalho para a conquista de ser alguém bem-sucedido na vida, portador do "ideal do EU".

A tensão entre arte e mercado, incontornável na arte contemporânea, impõe-se reforçada pelos "mecanismos de auto-objetificação e controle das subjetividades acionados pela selfie, entre verdades e mentiras, fatos e fake news".

O artigo "Selfie: o autorretrato do sujeito contemporâneo", da professora da graduação e da pós-graduação de Filosofia da Universidade Federal do ABC (UFABC), Paula Braga, pode ser conferido aqui.