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'Só vem conta': a rotina de quem mora em locais em que delivery não chega

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Priscila Carvalho

Colaboração para Tilt, do Rio de Janeiro

10/02/2022 04h00

Comprar um produto em uma loja online e depois recebê-lo em casa ainda é um desafio para moradores de algumas comunidades e bairros afastados do centro de São Paulo. A classificação como "regiões de risco" por parte de empresas de entrega de delivery, assistência técnica e dos Correios impede que compras sejam entregues nas residências.

Moradora de Heliópolis, maior comunidade da capital paulista e a 8 km do centro da cidade, há 30 anos, a jornalista Ana Paula Vieira viralizou em setembro do ano passado ao postar um relato no LinkedIn sobre essa dificuldade.

"A Dell Technologies se recusou a ir arrumar meu notebook porque considera o local onde eu moro 'uma área de risco', a 99 e a Uber têm a mesma impressão. (...) Não quero morar em outro lugar. Quero usar a entrega relâmpago da Magazine Luiza, do Mercado Livre e da Amazon de verdade. Quero poder usufruir dos carros de aplicativo e poder ter um suporte adequado, seja da Dell ou de qualquer outra empresa", escreveu na publicação.

Segundo o namorado da jornalista, o produtor musical Kaique Pereira Martins, 27, as entregas na região de produtos comprados pela internet simplesmente não chegam na casa onde o casal vive. A alternativa é ir pessoalmente até uma agência dos Correios, a 20 minutos do local onde moram, para retirar as encomendas, contou a Tilt.

Para resolver o problema, Ana Paula precisou ir até a sede do local onde trabalha, no bairro do Itaim Bibi, na zona oeste da capital paulista, para conseguir enviar o aparelho para a assistência técnica. A Dell Technologies foi procurada pela reportagem, mas não respondeu aos questionamentos até a publicação da matéria.

Kaique Pereira Martins, morador de Heliópolis, em São Paulo, enfrenta dificuldades para receber delivery e pegar Uber - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Kaique Pereira Martins, morador de Heliópolis, em São Paulo, enfrenta dificuldades para receber delivery e pegar Uber
Imagem: Arquivo pessoal

"Só chegam aqui as contas de água e luz. Ocorre com quase 100% da comunidade", afirma Kaique a Tilt.

O produtor acrescenta que alguns moradores do bairro recorrem a serviços de entregadores autônomos —alguns da própria região— para que eles peguem encomendas e/ou comprem produtos para quem contratou o serviço. "Um empreendedor aqui me disse que eles cobram R$ 3 por km [rodado para fazer as entregas]."

Carros de aplicativo não chegam

O casal também enfrenta dificuldades para conseguir motoristas de aplicativo de transporte particular que atendam no bairro. De acordo com Kaique, ele já ficou na mão algumas vezes ao tentar voltar para casa em Heliópolis com os serviços da Uber e da 99.

"Acho que é preconceito e não acho essa justificativa de 'área de risco' plausível", afirma. "É preciso se deslocar da sua residência e ir até um dos quatro pontos [de embarque] que a empresa [Uber] tem na região."

Esses pontos, segundo a plataforma, foram criados em 2019 para ampliar o acesso de pessoas da comunidade aos serviços de transporte. Dificuldades de deslocamento de carros em vias estreitas do local e mapas imprecisos foram alguns dos motivos para a criação da iniciativa.

Critérios de funcionamento da Uber e da 99

Em resposta a Tilt, a Uber informou que a "segurança é uma prioridade" e que suas tecnologias analisam situações de segurança, e não espaços geográficos. "Não temos uma ferramenta que diz, aquela região é arriscada, são feitas análises em diversas frentes."

A empresa destaca que os motoristas parceiros são independentes e autônomos. Ao cancelar uma corrida, os condutores podem sinalizar se desistiram por motivo de segurança. E essa informação fica cadastrada no sistema da plataforma.

"Eles têm liberdade para decidir quando ficam online, bem como para aceitar ou recusar viagens, assim como os usuários, afirma a companhia, que acrescenta que tem equipes e tecnologias próprias que revisam as viagens e os cancelamentos para identificar uso indevido ou abusivo da ferramenta.

Diferentemente da Uber, a 99 informa ao motorista quando a viagem que ele aceitou envolve passar por áreas consideradas "de risco" definidas pelo app. O condutor pode aceitar ou não o pedido, sem qualquer tipo de punição, diz a companhia.

Regiões consideradas de risco, segundo a 99, são estabelecidas por meio de dados coletados junto às Secretarias de Segurança Pública, informações internas do app e a colaboração de relatos de motoristas e entregadores parceiros.

"Os dados são dinâmicos e as zonas de risco podem variar. Por exemplo, uma região pode ser movimentada no horário comercial, mas deserta à noite e, por isso, pode ser considerada como de risco em horários específicos", diz a empresa.

Para ajudar no processo de classificação de áreas, a 99 conta com a inteligência artificial Cubo, que analisa ocorrências registradas no aplicativo para realizar silenciamentos temporários em ruas ou regiões onde possa haver criminosos atuando.

Entregas pelo Mercado Livre

Assim como o casal Ana Paula e Kaique, o publicitário Adriano Silva, morador do bairro Cidade Antônio Estêvão de Carvalho, distrito de Itaquera, na zona leste da cidade de São Paulo, também já enfrentou dificuldades com serviços de entrega.

Há quatro anos, ele tentou comprar uma maca e uma escrivaninha pela plataforma de comércio online Mercado Livre, mas não conseguiu que os produtos fossem entregues em seu endereço. "Era um caos porque você tinha um horário horrível para retirar em uma sede dos Correios", conta.

Na época, o local para retirada era no bairro Ermelino Matarazzo, também na zona leste, mas longe de sua residência. Anos depois do episódio, Adriano diz que ainda tem problemas para receber alguns produtos.

A mesma dificuldade é sentida pela empreendedora Karen Dias. Moradora de Caxambu, na cidade de Jundiaí, no interior de São Paulo, ela relata a dificuldade de receber itens comprados pelo Mercado Livre e em outras lojas virtuais.

"Já reclamei com os Correios, mas a única resposta era que ali era uma área de risco e que só entregavam com escolta", relembra. "Demorava mais para chegar. Às vezes, tinha que ir presencialmente a um lugar [para buscar a encomenda]."

Os Correios foram procurados para esclarecimentos do que são consideradas áreas de risco e como funciona a logística com escolta. A resposta foi apenas que: "As informações estratégicas ligadas às atividades concorrenciais e de segurança são protegidas pelo sigilo empresarial, previsto na Lei 12.527/2011. Os Correios ratificam que adotam várias ações visando a segurança dos trabalhadores, dos clientes, bem como a integridade dos objetos postais".

Se você desejar, é possível verificar a condição de entrega de um endereço e possíveis restrições aqui.

O Mercado Livre também foi procurado. Por meio de nota, a empresa afirmou que tem investido em sua malha logística, com entregas em território nacional, incluindo as regiões consideradas de risco —seja com logística própria ou parceiros.

"A empresa se adequa a cada localidade do país para seguir com as suas entregas, inclusive contratando entregadores das próprias regiões, com a proposta de oferecer a todos os usuários da plataforma a entrega mais rápida do Brasil", diz a companhia.

Quando questionada sobre como classifica as áreas de risco, a empresa não deu informações.

Desigualdade na hora da entrega

Ao mesmo tempo que o casal que mora em Heliópolis não recebe encomendas, pessoas que residem no entorno contam a Tilt que nunca tiveram problema. Isso mostra o quão variáveis são os critérios usados para a prestação do serviço.

Um exemplo é a enfermeira Thaís Simões Gomes, que mora na região do Sacomã, bairro próximo de Heliópolis, há 15 anos. Segundo ela, tanto por Sedex quanto por transportadora, as compras chegaram sempre no prazo solicitado. "Eu moro a uns quatro quilômetros do Sacomã. Mas nunca tive esse tipo de problema", conta.

O publicitário Lucas Barani, 30, morou por quase 27 anos na região do Ipiranga, na zona sul da capital paulista próxima ao bairro Heliópolis, e também nunca teve problemas com entregas feitas pelos Correios ou corridas feitas por carros de aplicativo.

"Sempre foi muito fácil pegar carro, tanto Uber como 99. Mas conheço pessoas que moram em bairros perto do Sacomã e que não conseguiam pegar Uber e outros, e até mesmo receber encomendas", diz.

Os Correios não deram respostas sobre os critérios que fazem bairros próximos aos considerados por empresas como "áreas de risco" receberem entregas normalmente.