Por que não conseguimos prever tragédias como a de Petrópolis? Entenda
As fortes chuvas em Petrópolis, que já deixaram mais de cem mortos nesta semana, trazem novamente um cenário triste pelo Brasil. Somente nas últimas semanas, tivemos acontecimentos similares no Espírito Santo, em Minas Gerais, em São Paulo e na Bahia.
As tempestades deixaram vítimas, pessoas desabrigadas e imóveis destruídos, além de afetar a infraestrutura de estradas e antenas de transmissão. E quando acontecem, levantam o debate: a ciência avança, mas por que ela ainda não é capaz de prever com precisão esse tipo de fenômeno?
Segundo Francisco de Assis, meteorologista do Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia), com as ferramentas de que dispomos hoje, temos como saber que uma chuva forte se aproxima. No entanto, não há como saber o volume de água dessa chuva, o que não é um problema exclusivamente brasileiro.
- Veja as últimas notícias sobre a tragédia em Petrópolis e mais no UOL News com Fabíola Cidral:
Dificuldade de precisão
Modelos matemáticos de previsão do tempo dependem de informações sobre o estado da atmosfera num determinado instante. Com isso, é possível prever o que vai acontecer nas próximas horas e nos próximos dias — mas não a incidência precisa da queda de um grande volume de água.
Assis explica que um dos problemas que impedem essa previsão com dados mais concretos é que a distribuição da precipitação de chuva na atmosfera é muito irregular. "Então, por exemplo, se você está numa localidade e cai uma chuva forte, se você andar dez quilômetros para frente, não choveu nada", explica.
No caso de Petrópolis, choveu em poucas horas o equivalente às chuvas de mais de um mês. Contudo, esse volume atingiu uma área específica. Segundo o especialista, foi uma "situação anômala" de chuva muito forte e um evento exclusivo da serra. "Se afastando dez, vinte quilômetros da serra, não caiu quase nada de chuva."
De acordo com o meteorologista, chuvas consideradas significativas costumam abranger grandes áreas, de cem quilômetros de extensão ou mais.
Casos similares ao de Petrópolis ocorreram nas chuvas do verão do hemisfério norte no ano passado. Na província chinesa de Henan, quase 400 pessoas morreram. Na Europa, no mesmo período, chuvas fortes castigaram a Alemanha, resultando em 192 mortes.
"Podemos dizer que vai chover acima dos 100 milímetros, mas não mais do que isso. E pode ser que chova 200 milímetros, o que é muito, muito acima", diz Assis.
Segundo dados do Cemadem (Centro Estadual de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais), foram 250 milímetros de chuva em apenas três horas em Petrópolis na terça-feira (15), bem mais que os 185 milímetros esperados para todo o mês de fevereiro na cidade fluminense.
Falta de conexão entre academia e mercado
O professor Pedro Leite da Silva Dias, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), defende que é necessária uma integração maior entre a produção acadêmica sobre o tema e a rotina dos serviços de meteorologia. Isso poderia nos ajudar a melhorar as previsões.
"No Brasil, temos muita dificuldade em transformar o trabalho de sensoriamento remoto [dados coletados por satélites e radares] em operacional. O que isso quer dizer? Que não fazemos isso rapidamente e não distribuímos as informações para os usuários", diz o professor. "Nos falta essa transição entre o produto acadêmico e o produto operacional."
Para o docente, a comunidade acadêmica e a área operacional empurram essas responsabilidades uma para a outra — e é difícil dizer quem tem razão. "Falta a percepção por parte do poder público de que esta transição [de conhecimento] tem custo", diz, apontando essa questão como um problema crônico do país.
Previsão de muito curto prazo
Dias afirma que, no Brasil, as previsões de tempo na escala de vários dias e na escala sazonal funcionam bem, em nível comparável ao exterior. Mas o problema está na previsão de muito curto prazo, que deveria ser quantitativa — e com o melhor acerto possível.
No caso de Petrópolis, o especialista afirma que foram previstas chuvas isoladas. Mas isso não foi possível porque nenhum dos modelos disponíveis chegou sequer perto de prever o que ocorreu.
"Se formos evacuar por chuvas isoladas o pessoal que mora na área de risco, num chute, digamos, educado, eu diria que em 180 dias do ano você teria que tirar o pessoal, porque chove muito. Ou seja, é impraticável. Por isso, temos de ser muito mais precisos, avisar que é um alerta vermelho, e aí sim tomar uma providência", afirma.
Falta de aplicação de dados nos modelos
Para Dias, parte do problema estava em não fazer essa introdução dos dados de sensoriamento remoto nos modelos matemáticos — que permitiria, por exemplo, avaliar a formação das nuvens através do material que está em suspensão no ar.
O método mostrou resultados nas pesquisas acadêmicas, mas ainda não é feito de forma ampla nos serviços de previsão do tempo.
Os eventos meteorológicos críticos — que indicam riscos — que ocorrem no Estado do Rio acontecem com ventos que trazem ar do mar. Portanto, um dos materiais que poderia ser detectado é o sal marinho, que é eficiente para converter o vapor de água presente na atmosfera em água líquida, destaca o professor.
"A nuvem que produziu a chuva do dia 15 era pequena, não era uma nuvem de tempestade, tanto que não teve relâmpago nem nada disso. Simplesmente a água veio do mar, subiu a serra, resfriou, formou-se a nuvem e ela despejou a chuva na região serrana", explica Dias.
Caminhos possíveis
Como solucionar essa distância entre o conhecimento acadêmico e a meteorologia cotidiana? Para Dias, o modelo inglês é um bom exemplo: na Inglaterra, o meteorologista precisa dedicar 50% do seu tempo à pesquisa e 50% do tempo à operação. "Por isso, a previsão de muito curto prazo na Inglaterra é excepcional, eu tiro o meu chapéu, e não acho que seja coincidência."
Por fim, o professor aponta a falta de investimento público como grande obstáculo para a meteorologia no Brasil. Para que os modelos de previsão do tempo sejam aprimorados, é necessário que simulações de várias condições sejam realizadas, o que exige um custo computacional bastante elevado.
"Não é à toa que os grandes computadores, aqueles com o desempenho mais alto que se encontra no mundo, estão nos centros meteorológicos de países desenvolvidos. São equipamentos que custam na casa das centenas de milhões de dólares. Mas o benefício é evidente. Quantas vidas poderíamos salvar?", conclui.
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