Dinheiro digital: por que Brasil, China e EUA querem abandonar papel-moeda
Países como Brasil, China e Estados Unidos podem ser os próximos a trocarem o dinheiro físico por moedas digitais como base da economia. A ideia, já posta em prática na Suécia, visa diminuir o custo de impressão do dinheiro. Além disso, ter mais controle sobre as transações financeiras.
Na teoria, a mudança pode parecer simples para alguns, mas não é algo fácil de ser aplicado por esbarrar ainda em entraves tecnológicos, culturais e socioeconômicos. Tilt conversou com especialistas em ativos digitais para entender o que são as moedas digitais e as diferenças entre elas e os criptoativos (como Bitcoin e Ethereum).
Eles explicam ainda o quão próximos estamos de ver o tradicional dinheiro de papel deixar de existir no Brasil.
Sai o dinheiro físico, entra o digital
Segundo Nicolas Farto, especialista em renda variável da Renova Invest, escritório vinculado ao BTG Pactual, as moedas digitais envolvem CDBCs (Central Bank Digital Money), que são projetos de bancos centrais para digitalizar a base monetária do país. "Passa-se a usar não mais o papel-moeda, mas um token [ativo digital] que representa esse papel-moeda", explica Farto.
Na prática, elas são ativos digitais que podem ser usados para transações financeiras. Porém, diferentemente das criptomoedas como o Bitcoin, a emissão delas precisa ser gerenciada por um Banco Central — assim como o dinheiro de papel é emitido.
Entendendo melhor moedas digitais x criptomoedas atuais
A tecnologia por trás do bitcoin envolve o blockchain (cadeia em blocos, em tradução literal), que consiste em um registro público, aberto e auditável sobre as transações, de forma que qualquer alteração indevida pode ser revertida, evitando fraudes.
Entre outras vantagens, estão: o tempo de transação entre o envio e o recebimento de dinheiro é muito mais rápido do que os métodos convencionais. Como não precisa de intermediários, a transferência pode ser realizada com pessoas de qualquer parte do mundo sem passar por bancos.
E é aí que entra uma das grandes diferenças com as moedas digitais— que precisam que um Banco Central as administre. "Na prática, [seria] uma estrutura semelhante ao que é hoje", completa. Só que num formato de emissão de novos tokens de modo não descentralizado (entenda mais sobre isso no fim do texto).
As criptomoedas são validadas através de tokens, que são encontrados por mineradores espalhados pelo mundo inteiro. Um minerador pode ser uma pessoa comum, que usa computadores para resolver cálculos complexos, descobrindo sequências numéricas para fazer o arranjo dos blocos. Já em um CDBC, a validação fica nas mãos do Banco Central.
Isso permite maior controle sobre a moeda, podendo usá-la em prol da política monetária do país. "O real digital permitiria ter muito mais controle para inspecionar essas divisas. Com uma CDBC, o Banco Central abre caminho para ter outras ferramentas de política monetária, como data de vencimento, verificar na sua carteira e saber para onde você está mandando [o dinheiro]", afirma Farto.
"Mas também existem temores. Por exemplo, um Banco Central que queira estimular o consumo, pode adotar uma validade para a moeda e isso obrigaria as pessoas a gastá-la em um prazo determinado. Pode também confiscar as reservas de uma pessoa para evitar corrupção. Mas isso também pode ser usado de forma questionável. É muito poder na mão de um órgão central que pode cometer erros", acrescenta.
Yuan digital: a iniciativa chinesa
Atualmente, a China é um dos países mais avançados na substituição do papel-moeda. O yuan digital está sob o controle do Banco Central chinês, e as instituições financeiras são obrigadas a enviar dados sobre as transações financeiras, para prevenir crimes de lavagem de dinheiro e corrupção.
"A moeda da China começou a ser implementada agora, recentemente. O que a gente tem de relatos é que ela funciona como o yuan, o dinheiro em papel. Só que você paga tudo pelo celular ou pelo aplicativo", afirma Gabriel Câmara, assessor da iHub Investimentos, escritório ligado à XP Investimentos.
De acordo com os últimos dados do CNNIC (Centro de Informações da Rede de Internet da China), mais de um bilhão de chineses têm acesso à internet e isso representa 71,6% da população do país. "Nas vilas mais longínquas, os chineses usam smartphone e QR Code. Por isso, a implantação de um ativo digital foi muito fácil", acrescenta.
Outro país que também avançou bastante nessa questão foi a Suécia, onde os pagamentos digitais são feitos através de um app chamado Swish. A moeda digital e-krona estará em fase de teste até novembro de 2022. Sua implantação completa, no entanto, pode demorar até 2026.
Pix é o primeiro passo para moeda digital brasileira?
Assim como o app Swish acabou praticamente substituindo as transações em dinheiro na Suécia, o Pix tem tido efeito similar no Brasil. Para os especialistas, ele é um primeiro ensaio para a implantação de um real digital.
"O Pix veio para facilitar a troca de dinheiro. Desde 2015, o brasileiro passou a se digitalizar fortemente, os aplicativos começaram a ter investimento pesado e surgiram os bancos digitais. O que não havia nesse período? Facilidade de transição do dinheiro", afirma Câmara. "O Pix veio para facilitar o que já estava visível que era uma dificuldade nossa e é uma primeira etapa do que seria o real digital."
Para Farto, o Pix é um embrião da nossa CDBC [moeda digital]. "Se você parar para avaliar, na prática ele já é um real digital. Em tese, você poderia substituir hoje toda a nossa base monetária pelo Pix."
No entanto, a facilidade da tecnologia impõe novos desafios ao Banco Central. E um dos mais importantes é lidar com a proteção de dados e do sistema envolvido nas moedas digitais. Em janeiro deste ano, por exemplo, 160 mil chaves do Pix vazaram.
"Na medida que você centraliza as transações, você tem um alvo nas costas. Você acaba recebendo uma série de ataques hackers, na tentativa de derrubar o sistema. Seja por ideologia ou na intenção de roubar recursos", ressalta Farto.
Brasil (não) conectado
Assim como a população da China, nem todos os brasileiros têm acesso à internet e a celulares. Segundo a pesquisa promovida pelo Cetic.br e pelo Cgi.br, o país tem 152 milhões de pessoas (ou 81%) com acesso à internet. Logo, 19% ainda não possuem acesso.
A chegada da rede 5G e todas as obrigações de fazer operadoras levarem mais conectividade para regiões que ainda não possuem internet estável surgem como esperança para que esse cenário de desigualdade mude.
Outro entrave, parcialmente resolvido, é a desbancarização da população brasileira. De acordo com um estudo do Instituto Locomotiva, 21% dos adultos (34 milhões) não possuem conta bancária ou não a movimentam há mais de um mês. Esse número só é menor porque o pagamento do auxílio emergencial reduziu em 73% o total de desbancarizados no país.
"Além disso, muita gente tem a cultura do dinheiro físico. Principalmente as pessoas mais idosas, que tinham talão de cheque, guardavam dinheiro no colchão. Talvez, para essa população mais velha, seja um pouco mais difícil disseminar o real digital. Mas, ao longo do tempo, essa barreira deve ser vencida", acredita Nicolas Farto.
Apesar de todas essas questões, Gabriel Câmara calcula que até o final desta década estaremos vendo o início da implantação do real digital no Brasil. "Acredito que todos os nossos problemas não estarão solucionados até 2030, mas terão diminuído", afirma.
A implementação de uma moeda digital visa atrair um mercado cada vez mais interessado em criptomoedas e, também, evitar que governos não tenham mais controle sobre a política monetária, reforçam os entrevistados.
"Se os Banco Centrais não fizeram nada para concorrer com essa tecnologia, eles ficarão para trás. Então, isso coloca um pouco de incentivo para implantação das CDBCs", afirma Farto.
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