Bloqueio do Telegram prevê multa até para pessoas que burlarem restrição
A decisão desta sexta-feira (18) do ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), de bloquear o Telegram no Brasil surpreendeu especialistas por atuar em três frentes: o app deve ser removido das lojas da Apple e do Google; deve ser barrado por operadoras de internet e empresas de infraestrutura de rede (backbone); e prevê multa até para pessoas comuns que tentarem driblar o bloqueio — usando VPNs, por exemplo.
"A decisão é inédita na história dos bloqueios de aplicações no Brasil porque ela junta as formas de bloqueio tentadas no passado e adiciona uma série de novas sanções", diz Carlos Affonso Souza, diretor do ITS-Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro), e colunista de Tilt.
Entre as formas de restrição que já foram determinadas está a obrigação do Google e da Apple removerem o Telegram de suas respectivas lojas de apps. Uma medida parecida foi usada contra o polêmico aplicativo de mensagens anônimas Secret em 2014. Além disso, operadoras de telefonia também deverão impedir o funcionamento da plataforma, assim como ocorreu nos casos de bloqueio do WhatsApp em 2015 e 2016.
A novidade da vez, segundo advogados entrevistados por Tilt, é a previsão de multa de R$ 100 mil para quem tentar driblar o bloqueio usando VPN, um sistema que mascara o tráfego da internet e é usado para driblar restrições e censura.
"Parece ser a primeira vez que esse tipo de medida aparece em uma ordem de bloqueio juntamente com a suspensão do aplicativo nas lojas e de seu acesso no Brasil como um todo", diz Souza.
Para a advogada especializada em direito digital Patricia Peck, a previsão de multa a quem usar VPN "extrapola um pouco". "Não há previsão do Marco Civil da Internet de aplicar multa a usuário", diz.
"Quem está descumprindo a legislação brasileira é o Telegram, então o direcionamento devia ser apenas ao Telegram, não às pessoas físicas", completa.
Lei controversa
A decisão de Moraes se baseia num trecho controverso do Marco Civil da Internet, segundo Heloísa Massaro, coordenadora de pesquisa do InternetLab (Centro de Pesquisa em Direito e Tecnologia).
O seu artigo 12 prevê multa e bloqueio a empresas de tecnologia que não cumprem ordens judiciais no Brasil. Sobre ele, Massaro afirma que os itens que o compõe estão em debate no próprio STF, após ter sido usado no passado para sustentar o bloqueio do WhatsApp.
Protocolada em 2016 pelo PR (Partido da República), a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.527 pede que o STF declare o artigo 12 como inconstitucional, justamente para evitar que juízes de primeiro e segundo graus suspendam aplicativos como o WhatsApp em todo o Brasil —como já ocorreu no passado.
A tramitação da ADI está parada no STF desde maio de 2020, quando o próprio Alexandre de Moraes pediu vista, que significa mais tempo para analisar o caso.
Apesar desse contexto, a decisão de agora não envolve uma brecha jurídica, explica Massaro. "É uma interpretação possível do Marco Civil, está de fato escrito lá. Mas é um artigo controverso por ter sua constitucionalidade sob debate."
Decisão está fundamentada na lei
Apesar de tudo isso, especialistas ouvidos por Tilt concordam que a decisão do ministro está fundamentada na lei brasileira: o Telegram descumpriu uma ordem judicial, e por isso pode ser bloqueado.
A ordem em questão tem a ver com duas investigações do STF (Supremo Tribunal Federal): os inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos, que buscavam investigar ataques virtuais ao STF e à democracia —crimes previstos em lei, sob pena de quatro a oito anos de prisão.
No centro da investigação estão perfis que espalharam fake news e ataques virtuais à democracia através do Telegram, como o do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, atualmente foragido da Justiça.
Em fevereiro, o STF exigiu que o Telegram apagasse perfis do blogueiro e também entregasse dados que permitissem identificar os responsáveis por seus canais no aplicativo — o Telegram obedeceu apenas à primeira parte da ordem, mas não à segunda.
"Apesar de os efeitos serem drásticos, a decisão é acertada", diz Yasmin Curzi, pesquisadora do CTS (Centro de Tecnologia e Sociedade) da FGV Rio (Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro). "Há uma ordem judicial específica que o Telegram está descumprindo."
Segundo ela, o fato de haver um crime claro por parte do Telegram (o de não cumprir ordem judicial) torna o bloqueio do app mais bem justificado do que as ameaças feitas pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), que pediam cooperação da empresa no combate a fake news. "Houve descumprimento de decisão judicial e o artigo 19 do Marco Civil da Internet é bastante claro em pontuar a possibilidade de responsabilização de aplicativos quando não há cumprimento de decisão judicia."
Para o advogado de direito constitucional Acacio Miranda Filho, a decisão já era esperada. "Após várias tentativas do judiciário (do Tribunal Superior Eleitoral ao Supremo Tribunal Federal) de contato, o fato de eles não terem uma sede no Brasil, e não responderem aos pedidos, já mostra um certo desprezo deles para com a Justiça local", diz.
Questionado sobre se a decisão não era exagerada, dado que muitas pessoas usam o Telegram para distintos fins, e não necessariamente para crimes, Filho explicou: "A decisão tenta balancear a liberdade de expressão e se há uma ilicitude". Neste caso o ministro optou pela suspensão, dado que nunca houve uma resposta do Telegram.
Dark web 'acessível'
"Em nosso entendimento, a decisão do Ministro Alexandre de Moraes foi acertada", diz Mauro Ellovitch, responsável pela Coeciber (Coordenadoria Estadual de Combate aos Crimes Cibernéticos), órgão do MPMG (Ministério Público de Minas Gerais).
"Não é razoável, em um Estado Democrático de Direito, que qualquer pessoa se recuse a cumprir a legislação e não sofra consequências", acrescenta. "Todo aplicativo que se recuse a cumprir a legislação e sirva de abrigo para práticas criminosas graves deve ser limitado até que se adeque. Ninguém está acima da Lei."
O problema é que o Telegram não pratica moderação ativa de conteúdo, como outras redes sociais (Facebook, Instagram e Twitter, por exemplo), nem usa criptografia de ponta a ponta por padrão, como o WhatsApp — de modo que não pode dizer que "não sabe" o que rola lá dentro.
O app diz que, seguindo os "princípios" do seu criador, não lida com o que considera "restrições de liberdade de expressão". "Embora bloqueemos bots [robôs] e canais terroristas (por exemplo, relacionados ao Estado Islâmico), não bloquearemos ninguém que expresse pacificamente opiniões alternativas", diz a empresa na página de perguntas frequentes em seu site oficial.
Logo, desinformação sobre vacinas, covid-19 e fake news que ameaçam eleições acabam entrando no pacote do que o app considera "liberdade de expressão". O Telegram ainda não respondeu ao pedido de Tilt por um comentário ou entrevista.
"Os responsáveis por esse aplicativo descumprem ostensivamente ordens judiciais para fornecimento de dados, mesmo não criptografados, de perfis utilizados para a prática de crimes gravíssimos como tráfico de drogas, organizações criminosas e, especialmente, crimes relacionados a exploração sexual de crianças e adolescentes", diz Ellovitch.
"Assim, o Telegram estava se tornando, na prática, uma espécie de 'Dark Web' mais acessível", acrescenta, em referência à parte mais "profunda" da internet, longe dos motores de busca como o do Google, onde todo tipo de crime virtual é praticado. "Os danos decorrentes disso são gravíssimos."
Acabou a paciência
Para a advogada Giselle Truzzi, especialista em direito digital, a inércia do Telegram ao cumprir ordens judiciais serviu de base para a decisão de bloqueio.
"[A decisão] não é um caso isolado. Juridicamente falando, a decisão do ministro faz sentido porque a desobediência do Telegram em relação as solicitações do judiciário brasileiro têm sido recorrentes", afirma a especialista, que é sócia fundadora de Truzzi Advogados.
Ela acrescenta que o Artigo 12 do Marco Civil da Internet destaca sanções em caso de descumprimento de suas regras, que vão desde notificações, multa e até suspensão temporária das atividades ou proibição dos serviços dessas atividades."Então essa foi a fundamentação do ministro. Ele certamente deve ter emitido uma ordem no intuído de advertência, outra de multa. E não havendo resposta no processo, ele determinou [o bloqueio]", diz Truzzi.
*Colaboraram Guilherme Tagiaroli, Bruna Souza Cruz e Camila Mazzotto
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