Acidente de ex-BBB Rodrigo reacende debate: 99 pode ser responsabilizada?
O ex-BBB Rodrigo Mussi segue internado na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do Hospital das Clínicas após ter sofrido um grave acidente de carro na quinta-feira (31), em São Paulo. O motorista de aplicativo Kaique Reis, que conduzia o veículo em que o influencer estava, afirmou ter dormido ao volante.
O acidente reacendeu o debate sobre as condições de trabalho a que estão submetidos os motoristas de aplicativo e a possível responsabilização das plataformas que fazem a mediação das viagens. No momento da colisão, Reis trabalhava com a 99.
O caso foi registrado como lesão corporal culposa, isto é, não existiu a intenção de causar o acidente, segundo a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.
Longas jornadas x ganhos
O motorista Reis afirmou que havia dirigido durante três horas e 30 minutos antes do acidente. Em nota enviada a Tilt, a 99 disse que o condutor realizou três viagens pela plataforma nas 24h anteriores ao ocorrido. Após a colisão, ele foi submetido ao teste do bafômetro, que resultou negativo.
Para o presidente da Amasp (Associação dos Motoristas de Aplicativo de São Paulo), Eduardo Lima, os riscos de acidentes aumentam diante do cansaço mental e físico acumulado pelas longas jornadas de trabalho, uma realidade comum para a categoria.
"O motorista já começa o mês devendo, só com despesas para trabalhar. Esse valor inclui combustível, troca de óleo mensal, alimentação, telefonia, proteção veicular, financiamento ou locação, lavagem do carro e seguro. Ele gasta R$ 282 por dia só para manter o sistema rodando", calcula o representante da Amasp.
Os valores repassados para os condutores pelas plataformas de aplicativos de transporte variam conforme a região/cidade em que trabalham. 99 e Uber, duas das principais companhias que atuam por aqui, não detalham as porcentagens direcionada aos motoristas.
Lima diz que, em média, os valores em São Paulo giram em torno de:
- Tarifa base: R$ 1,85
- Tarifa por quilometragem: R$ 1,29
- Tarifa por minuto: R$ 0,26
Para a Amasp, muitos condutores acabam se obrigando a trabalhar várias horas seguidas para conseguirem ter ganhos suficientes para suas realidades. "Sabemos que muitos de nós só tiram duas folgas no mês. E tem dia que a pessoa realmente trabalha poucas horas porque já veio de uma semana muito cansativa", acrescenta.
Conforme apuração anterior de Tilt, motoristas entrevistados em 2019 já relatavam trabalhar em média 12 h por dia —ou até atingir a meta diária de R$ 200 a R$ 250. Com a alta da inflação e aumentos do preço do combustível, o temor é de que essa jornada esteja ainda maior, destaca o representante da Amasp.
Bloqueio de motorista com 12 h de trabalho
De olho na segurança das viagens de aplicativos, a Uber possui uma ferramenta de inteligência artificial que envia notificações ao motorista quando ele se aproxima do limite de 12 horas diárias conduzindo o veículo. Atingido esse tempo, o condutor é automaticamente desconectado e não consegue utilizar o aplicativo nas próximas seis horas.
A 99 também possui recursos para aumentar a segurança de forma geral— como câmeras que podem ser usadas dentro dos veículos—, mas não possui um recurso específico de bloqueio envolvendo limite de horas trabalhadas.
"A plataforma conta com políticas que sugerem que motoristas parceiros façam pausas durante o período em que dirigem pela 99. O aplicativo permite que o parceiro fique offline quando não quiser receber solicitações de corridas, sem nenhuma restrição para essas pausas", diz a 99. A empresa acrescenta que apenas 0,004% do total de suas corridas resulta em acidentes graves.
É bom lembrar que os apps da Uber e da 99 mantêm centrais telefônicas de emergência, que podem ser acionadas para registrar acidentes (assaltos também) e fornecer orientações aos condutores sobre os trâmites necessários.
Burlando o bloqueio
Apesar do bloqueio da Uber e recomendações da 99, Lima diz que alguns motoristas burlam essas políticas e permanecessem trabalhando por longas jornadas.
"Quando o sistema bloqueia um motorista por longa jornada, ele vai rodar através de outro app porque precisa pagar as contas", ressalta. "Estamos pedindo equiparação de valores para que não precisemos ficar horas no volante. Ninguém quer trabalhar por 14 h, 16 h seguidas de domingo a domingo. Se faz, é porque precisa."
99 tem responsabilidade em acidente?
Segundo as investigações iniciais, Rodrigo Mussi não usava o cinto de segurança. O ex-BBB teve traumatismo craniano após o carro em que estava colidir com traseira de um caminhão.
A responsabilização por acidentes envolvendo empresas de aplicativos de transporte, motoristas e passageiros ainda implica indefinições jurídicas.
Oficialmente, as companhias do setor não possuem frotas de carros e os motoristas que aceitam trabalhar para as plataformas são considerados por elas parceiros autônomos. Os condutores devem seguir certas regras determinadas pelas políticas de cada empresa, mas eles são independentes para, por exemplo, definir dias e horários de trabalho. Por isso não há registro trabalhista.
A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se manifestou sobre o assunto e reconheceu ausência de relação de trabalho entre motoristas e empresas de aplicativos, que são inscritas na Receita Federal como companhias de tecnologia, e não de transporte.
Segundo o STJ, ações envolvendo, por exemplo, reparação de danos materiais e morais ajuizada por motoristas de apps que defendem ter mais direitos são de competência da Justiça Comum Estadual, a serem analisadas caso a caso. Tampouco há jurisprudência quanto a questões envolvendo fiscalização e controle da jornada de trabalho.
Por isso, de um lado, há um entendimento de que qualquer questão que aconteça durante uma viagem envolve apenas os passageiros e o condutores. Ou seja, perante a lei e na prática, o motorista é autônomo e cabe a ele definir se tem ou não condições de trabalhar.
Agora, do outro lado, alguns especialistas em direito afirmam que as plataformas devem sim ser responsabilizadas em caso de processos judiciais. E isso vale para casos de acidentes, assaltos, estupros e outros tipos de violência.
No ano passado, por exemplo, uma jovem de 22 anos entrou na Justiça de São Paulo contra a 99 pedindo indenização depois que ficou ferida ao pular de um carro em movimento. Ela deixou o veículo após o motorista não ter parado no destino final indicado pelo aplicativo.
O processo ainda segue em análise. Mas, segundo advogados ouvidos na época, a 99 possui uma "responsabilidade solidária" sobre a situação, prevista no Código de Defesa do Consumidor (CDC).
"A responsabilidade deles [99] é objetiva, independentemente de qualquer discussão sobre os motoristas terem vínculo empregatício ou não. Os passageiros não contratam motorista de aplicativo, contratam o próprio aplicativo", explicou Enki Della Santa Pimenta, advogado especialista em direito do consumidor.
Para se ter uma ideia da indefinição jurídica, o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, em Campinas, acolheu em abril do ano passado um parecer do MPT (Ministério Público do Trabalho) e reconheceu a relação trabalhista de um motorista com a Uber, que afirmou que iria recorrer da decisão.
Um mês antes, porém, a 17ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, sediada em São Paulo, derrubou uma sentença que havia condenado a Uber a pagar indenização de R$ 14 mil a um motorista, que solicitou o vínculo de emprego e o pagamento de verbas rescisórias, horas extras e recolhimentos previdenciários.
*Com matérias Abinoan Santiago, para Tilt, e de Splah, do UOL.
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