'Pior do que fake news é permitir pedofilia no Telegram', diz promotor
O Telegram está sendo utilizado por grupos que promovem pedofilia e pornografia infantil - e a investigação desses casos está sendo dificultada pela plataforma, que se recusa a quebrar o sigilo dos criminosos.
A análise é do promotor de justiça Mauro Ellovitch, responsável pela Coeciber (Coordenadoria Estadual de Combate aos Crimes Cibernéticos), órgão do MPMG (Ministério Público de Minas Gerais).
Criada em 2007, a Coeciber foi a primeira coordenadoria especializada em crimes cibernéticos do país. Segundo estimativa de Ellovitch, investigações de pedofilia online são a segunda demanda mais recebida pelo órgão, perdendo apenas para crimes patrimoniais.
Por sua gravidade, esses casos recebem prioridade máxima. Mas, segundo Ellovitch, quando envolvem o Telegram, o avanço é bem mais difícil.
Recentemente, o STF (Supremo Tribunal Federal) ameaçou bloquear o app por não cooperar com as investigações da Polícia Federal a respeito da dissminação de fake news. Mas, para o promotor, a desinformação é apenas a ponta do iceberg. "O Telegram está rapidamente se tornando uma dark web mais acessível para criminosos", afirma.
A criação de um canal de comunicação do aplicativo com a Justiça brasileira é vista pelo especialista como, ao menos, um "horizonte que se abre" para mudar esse cenário.
"O desdobramento disso agora vai depender muito de como a Justiça brasileira continuará agindo e se o apoio do Supremo irá se manter", avalia. "Se o Telegram não acatar os pedidos relacionados a abuso sexual infantil, por exemplo, teoricamente a punição deveria ser a mesma. O Poder Judiciário deveria se manifestar pela suspensão [do app] e o Supremo deveria referendar essa decisão."
E resume: "Para mim, é muito pior você permitir a existência de grupos para trocas de imagens de pedofilia dentro do Telegram, sem que haja uma resposta estatal para isso, do que a questão das fake news".
Confira a seguir os principais trechos de entrevista com Ellovitch.
Tilt: Quais são os crimes de pedofilia online que vocês mais ajudam a investigar?
Mauro Ellovitch: São o 241A, 241B e 241D do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).
O 241A é o envio, solicitação e transmissão de fotografias ou filmes envolvendo nudez ou exploração sexual de crianças e adolescentes. O 241B é o armazenamento desse conteúdo e o 241D é o assédio.
O próprio Superior Tribunal de Justiça já entendeu que o estupro de vulnerável pode ser cometido online e nós seguimos essa linha também. Como o estupro é praticar qualquer ato libidinoso com menor de 14 anos, você não precisa necessariamente ter contato físico com a vítima. Nós também apuramos casos de estupro de vulnerável online.
Tilt: Como funciona a investigação desses casos?
Mauro Ellovitch: Varia de acordo com o caso. Primeiro, a gente vai identificar as plataformas nas quais aconteceram os assédios, a exploração ou o estupro. Vamos buscar dados com esses provedores de aplicações para tentar identificar a autoria.
Com esses dados, a gente consegue extrair informações que vão nos levar à localização e à identificação do investigado. Também vamos buscar informações nas redes sociais e em sistemas de segurança pública, até conseguir ter uma definição mais segura de quem fez aquela postagem.
Muitas vezes, também apreendemos celular ou computador e extraímos dados. Já achamos aparelhos cheios de imagens de crianças que os investigados trocam uns com os outros.
A lei também nos autoriza a fazer infiltração virtual. Com autorização e acompanhamento judicial, criamos personagens online para conseguir entrar nesses grupos e identificar os autores.
Tilt: E qual é o principal desafio que vocês encontram nesse caminho?
Mauro Ellovitch: Primeiro, a demora. Todas as nossas quebras de sigilo de dados e interceptações são feitas com autorização judicial. E isso gera uma certa morosidade. É preciso buscar indícios, montar a ação, ajuizar, esperar o juiz entender e deferir.
Quando ele defere, temos também a dificuldade dos provedores, que são reticentes para cumprir a legislação. Temos aí o famoso Telegram, que não cumpre ordem judicial brasileira nenhuma. Temos também caso de provedor de conexão que cria dificuldades não-existentes na lei para fornecer os dados.
Outro obstáculo é a falta de preparo de outros órgãos de investigação. Como é um tipo de crime novo, ainda não há uma capacitação plena em todos os órgãos de investigação do Estado. Também não temos o número de profissionais necessários. É uma investigação complexa. Demanda você receber uma planilha com 500 IPs e fazer um filtro para achar um padrão, por exemplo.
Tilt: Você citou o Telegram. A rede também tem dado problema em relação às denúncias de abuso sexual infantil?
Mauro Ellovitch: Demais. O Telegram está rapidamente se tornando uma dark web mais acessível para criminosos.
Sob o pretexto de preservar a privacidade, está se colocando acima da lei em todos os países nos quais coleta dados. Temos zero accountability [termo em inglês para a prerrogativa de responsabilizar alguém] dessa plataforma. E os criminosos estão percebendo isso.
É uma plataforma que você acessa sem nem aparecer o número do terminal que você está usando, o que inviabiliza as investigações se a plataforma não cooperar com as autoridades.
Alguma coisa tem que mudar. Eles têm que parar de achar que é um favor colaborar com as autoridades, quando na verdade é uma obrigação. Eles não estão "colaborando": estão cumprindo o que está posto na lei de um país soberano.
Achei excelente que finalmente o Supremo Tribunal Federal tomou alguma postura. Mas acho uma pena que só tenha sido em relação ao caso das fake news, porque é um tipo de crime que acaba ganhando uma conotação mais política, e as pessoas perdem o foco de uma situação que é muito mais grave.
Para mim, é muito pior você permitir a existência de grupos para trocas de imagens de pedofilia dentro do Telegram. Dentro de uma escala de danos, acredito que os crimes de exploração sexual infantil são muito piores.
Tráfico de drogas, venda de armas, profissionalização dos estelionatos: tudo isso ocorre no Telegram sem o Estado dar uma resposta.
Tilt: O MPMG recebe muitas denúncias de abuso sexual infantil no Telegram?
Mauro Ellovitch: Sim. Nós tivemos um caso terrível recentemente, com um membro de um desses grupos. Tínhamos muitas provas em relação a ele. Seu terminal foi apreendido e estava cheio de imagem de abuso, inclusive do próprio filho dele.
Ele trocava mensagens em um grupo grande, que geraria uma grande investigação e seria fundamental para salvar muitas crianças no país. Eram pessoas que abusavam dos próprios parentes, dos próprios filhos e postavam nesse grupo.
Tilt: Quantas pessoas?
Mauro Ellovitch: Em torno de 50. Mas, devido à falta de accountability do Telegram, nós ficamos inviabilizados, num primeiro momento, de chegar a esses outros membros.
Tilt: Por quê?
Mauro Ellovitch: Porque nós não temos dados. Se fosse qualquer outra plataforma, a gente entrava com a quebra de sigilo de dados, o poder judiciário autorizaria uma ordem judicial e o provedor teria de nos informar os dados dessas pessoas.
Como o Telegram não cumpre ordem judicial, nós não temos como chegar nessas pessoas. Temos outras maneiras, mas são mais demoradas, demandam sorte. E isso está errado. Nossa legislação obriga o provedor a informar esses dados em casos de quebra de sigilo envolvendo crimes, especialmente crimes contra crianças e adolescentes.
Tilt: O que vocês geralmente fazem nesses casos: encerram ou tentam estes outros caminhos?
Mauro Ellovitch: Nós vamos buscar outras maneiras. Tentar uma infiltração virtual, que é mais complicada. Também demanda ordem judicial e sorte. Ou tentar com o próprio investigado que foi preso: buscar em documentos dele algum indício que possa identificar outros membros do grupo.
Tilt: Seria muito mais fácil se o Telegram respeitasse a lei?
Mauro Ellovitch: Mais fácil e mais efetivo. Porque, muitas vezes, a gente chega em um beco sem saída. O próprio sistema de accountability, de responsabilização da internet, funciona assim: você tem que ter como identificar quem faz o uso. O Telegram fala que está protegendo a liberdade de expressão, e a nossa Constituição garante a liberdade de expressão, mas veda o anonimato. A gente tem que ter como identificar quem faz as postagens. Ninguém está acima da lei para não responder pelo crime que comete.
Tilt: Na prática, é como se o Telegram estivesse colaborando para perpetuar o abuso sexual infantil online?
Mauro Ellovitch: Ele está colaborando, inegavelmente. Não dá nem para dizer que eles estão sendo negligentes. Estão conscientemente aceitando esse tipo de prática lá dentro.
Tilt: Muito tem se discutido se seria necessário bloquear o app no Brasil. Qual é a sua opinião sobre isso?
Mauro Ellovitch: Acho que o Telegram já passou da hora de ser bloqueado.
Eu tenho a convicção técnica de que nenhum provedor de aplicação está acima da lei. Se esse determinado provedor de aplicação se recusa a cumprir a legislação, tem que ser bloqueado, porque está captando dados, ganhando dinheiro no país.
Aí nós vemos todo tipo de argumento: "ah, mas se bloquear o Telegram, as pessoas vão migrar para outra plataforma". Sim, e a gente vai bloquear a outra plataforma se ela descumprir a legislação.
É uma lógica tão distorcida, é igual aquela lógica do "ah, se você prender um traficante, vai surgir outro traficante; se você prender um ladrão, vai surgir outro ladrão". Então, você não vai prender? Vai deixar a sociedade submetida à barbárie, à lei do mais forte? Não pode ser assim. A gente vive num estado democrático de direito.
Procurado por Tilt desde quarta-feira (30/3), o Telegram ainda não se manifestou até a publicação desta entrevista.
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