Apple 'perdeu alma' sem Steve Jobs e Jony Ive, diz novo livro sobre empresa
A cada novo lançamento da Apple nos últimos 11 anos, muitos fãs da marca se perguntam: o que Steve Jobs diria? Será que ele aprovaria um iPad com caneta e o tamanho gigante do iPhone atual? As mudanças na companhia desde a morte de seu cofundador, em 2011, são o tema de um novo livro que acaba de ser publicado nos Estados Unidos.
Em "After Steve" ("Depois de Steve", em tradução direta), o jornalista Tripp Mickle, repórter do New York Times e ex-Wall Street Journal, faz um retrato das mudanças internas na empresa a partir de relatos de mais de 200 pessoas, de executivos a ex-funcionários, conta o autor em entrevista a Tilt.
Nas 512 páginas do livro (que ainda não tem data para ser traduzido no Brasil), a história da Apple na era pós-Steve tem como personagens principais os dois "herdeiros" do império:
- Tim Cook, presidente-executivo (CEO) da companhia desde 2011
- Jony Ive, chefe de design da empresa que teve participação em produtos como iPod e iPhone.
Foi a saída de Ive da companhia, em 2019, que motivou a criação do livro e seu subtítulo: "como a Apple virou uma empresa de US$ 1 trilhão e perdeu sua alma".
Criatividade ou máquina de fazer dinheiro?
Segundo a percepção do jornalista ao desenvolver o livro, a saída de Ive foi a gota d'água de uma relação que vinha esfriando há anos.
O executivo começou na empresa em 1992, mas foi só em 1996, quando o Jobs voltou ao comando da Apple, que ele passou a liderar o departamento de design, impressionando o chefe com suas ideias mirabolantes e dando calafrios aos engenheiros que tinham que transformá-las em realidade.
Cook, por sua vez, foi escolhido pelo próprio Jobs por ter sido o responsável por agilizar a produção dos aparelhos revolucionários que a empresa lançava, sem atrasos de produção e sem recalls. Segundo Mickle, isso fez da Apple uma máquina de fazer dinheiro — ela foi a primeira a ser avaliada em mais de US$ 1 trilhão.
Contudo, os produtos têm ficado cada vez menos inspiradores: embora vendam feito água, nenhum lançamento da Apple pós-Jobs revolucionou o mercado como o iPhone e o iPod fizeram. Esse foco em eficiência, em detrimento da criatividade (e dos riscos que ela traz) tem representado mudanças significativas.
A Apple seria trilionária hoje se aquele espírito artístico permanecesse? Mickle acredita que não. "A empresa ficou tão grande, e algumas coisas precisam mudar quando você atinge esse marco", destaca ele, que relata que muitos dos entrevistados preferiram falar apenas "em off" — jargão jornalístico que define uma fonte que não quer ser identificada pela reportagem.
Confira a entrevista completa.
Tilt: De onde veio a ideia desse livro? Qual foi o gancho?
Tripp Mickle: O livro tem suas raízes em uma conversa de 2017, durante um café com um colega repórter aqui no Vale do Silício. Eu estava começando a cobrir a Apple e ele me disse: "se eu fosse você, daria uma olhada no Jony Ive". E não disse mais nada. Fazendo perguntas, descobri que ele estava meio desiludido na Apple, e achei que aquilo era interessante. Por que alguém que ajudou a construir essa grande empresa ficou desiludido?
Tilt: O subtítulo do livro fala que a Apple perdeu sua alma sendo trilhardária. O que é essa alma?
TM: É uma referência literal a Jony Ive. Steve Jobs dizia que ele era um parceiro espiritual e uma alma gêmea criativa. Então, em essência, ele era a alma da Apple, e saiu em 2019. Mas o motivo pelo qual ele saiu também explica o subtítulo, essa ideia de que ele se desiludiu, vendo uma empresa que estava mudando, deixando de ser um lugar onde a arte ditava o comércio para, cada vez mais, ser um lugar onde o comércio ditava a arte. Em grande parte porque a empresa ficou gigantesca e as expectativas de Wall Street eram enormes.
Tilt: Você acha que Steve Jobs queria que a Apple se tornasse uma empresa de trilhões de dólares?
TM: Curiosamente, muitos anos atrás, ele disse em uma entrevista ao escritor e repórter Steven Levy que queria que a Apple fosse uma empresa de US$ 10 bilhões, mas que nunca perdesse sua alma. É fascinante pensar nisso, não é? Essa era a mentalidade dele quando ele voltou para a Apple. E aqui está ela, muito maior do que o que ele imaginava.
Tilt: De alguma forma, seria possível que a Apple não tivesse perdido a alma, como você menciona?
TM: Não. É meio imperialista o que vou dizer, mas, de um jeito meio estranho, é como se primeiro viessem os conquistadores, "descobrindo" um novo mundo, e depois viessem os tecnocratas e burocratas, que construíram as cidades e a infraestrutura que existe hoje.
Essa é meio que a posição da Apple hoje. Antes era um lugar revolucionário, ágil e ambicioso, quando Jobs estava no comando. Mas cada vez mais vem se tornando um lugar maduro e bem definido, com limitações como resultado.
Hoje a Apple só consegue investir em categorias de produtos que permitam gerar dezenas de bilhões de dólares para valer a pena. Quando você tem essa exigência tão alta, isso limita o que você pode fazer. Há certos produtos que você não pode fazer porque não há valor para a empresa.
Tilt: E os outros executivos da era Jobs, como Craig Federighi, Eddy Cue, Phil Schiller? Eles não poderiam ter mantido essa alma viva?
TM: Esses executivos certamente estão tentando manter o espírito vivo, mas acho que há limitações em termos do que eles podem fazer. Você mencionou Craig Federighi, mas na época em que Jobs morreu, era Scott Forstall quem liderava o time de software. Ele é alguém sobre quem escrevi extensivamente em um capítulo do livro, que detalha algumas de suas lutas para se ajustar à nova liderança de Tim Cook. Eventualmente, ele foi demitido porque, no decorrer dessa mudança, Cook teve que mudar a forma como a Apple operava.
Tilt: Qual foi a principal mudança que Tim Cook trouxe para o dia a dia e que culminou com a saída de Forstall?
TM: Jobs era autocrático, concentrava muitas das decisões e trabalhava diretamente com os times de desenvolvimento. Na ausência dele, Tim Cook queria que o grupo de pessoas que liderava o desenvolvimento de produtos trabalhasse junto, que fossem colaborativos. Ele sabia que ele não era Steve Jobs, que não ia se envolver com os produtos, e por isso precisava que as equipes colaborassem. Scott Forstall teve muita tensão política com alguns de seus colegas, e isso tornou insustentável sua permanência na empresa.
Tilt: Walter Isaacson, que escreveu a mais famosa biografia de Steve Jobs, diz que ele era um líder que estimulava conflitos: ele gostava de colocar pessoas diferentes trabalhando juntas, para que das faíscas dessa tensão surgissem as boas ideias. Esse estilo de liderança ainda funcionaria hoje, com o escrutínio das redes sociais, a cultura do cancelamento e a exposição da cultura interna das empresas?
TM: Essa é uma ótima pergunta. Muitas pessoas pensam que Steve Jobs teria dificuldades hoje, mas não necessariamente com a cultura do cancelamento. Quer dizer, ele certamente era uma figura franca e direta. Embora fosse meio ditatorial dentro da empresa, externamente ele expressava empatia e simpatia de uma forma que ressoava com as pessoas. Será que ele seria cancelado? Ele poderia dizer coisas provocativas, mas não sei se ele diria coisas que o fariam ser cancelado.
Tilt: Qual seria o desafio dele hoje?
TM: Uma das coisas com as quais ele realmente teria dificuldade são as cobranças feitas à Apple hoje. Ela é quase como um império, tem que lidar com governos ao redor do mundo. Jobs odiava isso. A filosofia dele sobre os governos era: se fizermos bons produtos, então não teremos que lidar com o governo.
Tilt: Após Tim Cook, mais alguém pode manter essa máquina funcionando como ele faz? Mantendo esse valor de mercado de trilhões de dólares tão alto?
TM: A coisa mais difícil que eles vão ter que fazer para seguir os passos de Tim Cook é lidar com questões políticas com a mesma eficácia. Se você olhar para os anos [Donald] Trump e a disputa comercial com a China, Tim Cook navegou muito bem entre a China e os EUA, e essa disputa não vai acabar tão cedo.
Outra coisa a se pensar é: quanto tempo a Apple pode ficar sem ter outro produto revolucionário? Grande parte da última década foi sustentada por produtos ligados ao iPhone. Eles precisarão de outra grande revolução ou uma nova categoria de produto no futuro próximo para continuar crescendo. Quem ficar com o cargo de CEO terá que arcar com esse fardo.
Tilt: Seu livro também fala muito sobre como a Apple mudou de foco, saindo de produtos e se concentrando mais em serviços, como o Apple TV+ e o Apple Music. Essa estratégia é uma maneira de adiar a cobrança por um novo produto revolucionário?
TM: Essa é uma estratégia liderada e implantada por Tim Cook. Quando eles anunciaram os serviços [Apple TV+, Apple Arcade e Apple Card] em 2019, me lembro de sair daquele evento e encontrar pessoas de Hollywood, de bancos, cartões de crédito, de jogos. Todos estavam coçando a cabeça: o que é isso? Eles esperavam uma grande revolução, e não havia nada.
O que Tim Cook estava desbloqueando ali era o valor do iPhone, ao encontrar uma maneira de vender mais produtos dentro dos iPhones que já existiam. O que é muito inteligente. E é uma razão pela qual o valor da empresa aumentou aos olhos de Wall Street.
Tilt: O seu livro responde à eterna pergunta dos fãs? A Apple consegue sobreviver sem Steve Jobs?
TM: É engraçado, porque a resposta é tão clara e óbvia, não é? Eles poderiam parar de vender iPhones amanhã e eles ainda teriam dinheiro suficiente em caixa para sobreviver por anos. Eles são uma potência. Eu acho que a pergunta verdadeira é: eles podem fazer outro produto revolucionário novamente? Eles responderam brevemente com o Apple Watch, mesmo em suas falhas. Mas agora essa pergunta está ressurgindo, à medida que avançamos para a próxima década sem Jobs.
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